O novo gatekeeper da jornada
Se a IA já molda preferências e ocupa o papel de conselheira confiável, o que exatamente as marcas estão esperando para ajustar suas estratégias?
De repente, a velha máxima do marketing, aquela que dizia que a recomendação do amigo é ouro, começou a rachar. Algo mudou na jornada de consumo, e não foi sutil. O consumidor, soterrado por informações e plataformas, encontrou um atalho inesperado e tem seguido por ele com a naturalidade de quem troca de playlist: pergunta diretamente para a inteligência artificial. E, mais curioso ainda, ele acredita nela.
A cena se repete em categorias cada vez mais variadas. Gente planejando viagem, escolhendo restaurantes ou comparando marcas de cosméticos já consulta modelos generativos como quem busca a opinião de um especialista de confiança. O que antes era apenas uma ferramenta de produtividade virou companhia de decisão. Até as leis do Código de Defesa do Consumidor ficaram mais acessíveis. E, se algumas marcas acham que isso é apenas uma modinha tecnológica, vale ajustar a bússola. O comportamento está mudando rápido, inclusive na percepção do que é mais confiável.
Em experimentos que realizamos no setor de turismo e hospitalidade, avaliamos a credibilidade de recomendações feitas por humanos, influenciadores virtuais e IA generativa. A provocação era simples: quem é percebido como mais confiável? O resultado desmonta algumas certezas. Para consumidores com maior experiência em técnicas de persuasão, a IA foi vista como mais neutra, mais crível e mais alinhada às necessidades do que um influenciador humano. Sim, você leu certo. Pessoas treinadas para detectar intenção persuasiva confiaram mais em um modelo alimentado por bilhões de textos do que em alguém que existe no mundo real.
Esse padrão aparece também em outras pesquisas que comparam IA, especialistas e consumidores comuns. Há evidências de que algoritmos são percebidos como mais transparentes em algumas categorias de produtos e serviços, especialmente quando o produto tem atributos fáceis de avaliar. Em certos contextos, a IA chega a ser percebida como mais competente do que especialistas humanos.
Em outras palavras, a disputa não é mais entre humano e máquina. A disputa é entre quem o consumidor acredita que está jogando limpo com ele.
As consequências disso para a jornada são profundas. Se, até pouco tempo, o consumidor chegava às marcas depois de um longo zigue-zague entre reviews, buscas, fóruns e indicações, agora ele resume tudo a uma pergunta objetiva feita a um modelo de linguagem. A marca que não estiver clara, disponível e rastreável corre o risco de simplesmente não aparecer. E não porque o consumidor não a procurou, mas porque a IA não a encontrou.
E esse é o ponto que muitas marcas ainda subestimam. O problema não é a IA “roubar influência”. O problema é que ela reorganiza a jornada. Ela vira a interface. E quando a interface filtra, resume e recomenda, quem não estiver alimentando esse ecossistema com dados corretos, reputação sólida e conteúdo bem estruturado tende a desaparecer por irrelevância algorítmica.
Se a confiança está migrando para sistemas que o consumidor percebe como menos interessados em persuadir e mais orientados por dados, o marketing precisa de um novo tipo de transparência. A marca não pode ser apenas visível. Precisa ser inteligível para a IA. Precisa existir como dado, como fonte confiável, como presença reconhecível na arquitetura que forma a resposta. O SEO deixa de ser apenas otimização para buscadores e passa a ser otimização para grandes modelos de linguagem.
Estamos assistindo ao surgimento de um consumidor híbrido, que conversa com pessoas e com robôs. Alguns até namoram com eles, mas isso é assunto para outra hora. Um consumidor que segue influenciadores, mas pede confirmação
final para a IA. Que confia no amigo, mas só depois de ouvir o que a máquina tem a dizer. Marcas que não entenderem essa dinâmica podem continuar falando alto nas redes, enquanto o consumidor toma decisões silenciosamente em outra tela.
A pergunta que fica é simples e desconfortável: se a IA já molda preferências e ocupa o papel de conselheira confiável, o que exatamente as marcas estão esperando para ajustar suas estratégias? Gostando ou não, a lealdade do consumidor não será negociada apenas com branding ou mídia. Será negociada com dados, reputação algorítmica e relevância percebida por quem, na prática, está se tornando o novo gatekeeper da jornada.
E esse gatekeeper não se impressiona com storytelling. Ele se impressiona com consistência.