O futebol não cabe no Excel
Obsessão por monetizar cada centímetro da nossa atenção torna o consumo do esporte cada vez mais difícil e caro
A chegada do dinheiro “profissional” ao esporte, fundos de private equity, fundos soberanos, family offices, SAFs, costuma ser apresentada como um conto de modernização positivo e inevitável. Trazem mais governança, mais capital, mais receitas e oferecem mais conteúdo. Mas há um lado B que começa a ficar difícil de ignorar: a obsessão por monetizar cada centímetro da nossa atenção torna o consumo do esporte cada vez mais difícil e caro.
O primeiro sintoma pode ser visto na fragmentação dos direitos de mídia. Na Europa, serviços como DAZN, Eleven Sports, Discovery+ e outros passaram a disputar propriedades esportivas que antes estavam concentradas em poucos canais, levando a uma pulverização dos direitos entre TV paga, streaming e ofertas diretas ao consumidor (D2C).
O Campeonato Brasileiro alcançou um nível inédito e, para muitos, insustentável em 2025. Pela primeira vez, o torcedor precisará combinar TV aberta, TV paga, múltiplos streamings e plataformas de clubes para acompanhar integralmente a competição. Com Globo, Record, Amazon, YouTube, Liga Forte Futebol (LFF) e clubes negociando pacotes separados, o Brasileirão se tornou um mosaico de direitos que muda de rodada para rodada. Para o torcedor, significa múltiplas assinaturas, pacotes fragmentados e, muitas vezes, a impossibilidade prática de acompanhar o próprio time. Para o mercado publicitário, o efeito colateral é a perda do “último grande produto de massa” do País.
A história se repete nos estádios, onde a pressão dos investidores por receita se traduz no aumento dos preços dos ingressos. Na Premier League, 19 dos 20 clubes aumentaram ingressos de dia de jogo na última temporada (média de 6,7%), levando o valor médio a quase R$ 420. Nos Estados Unidos, a “precificação dinâmica” (modelo onde o preço de ingressos varia conforme a demanda) é o padrão. Esta estratégia de precificação fez, por exemplo, alguns ingressos para a Copa do Mundo da Fifa chegarem a patamares acima de R$ 7.000. A enxurrada de críticas forçou a Fifa recentemente a desistir de usar a “precificação dinâmica”,
No Brasil, os preços variam muito. Até a quinta rodada do Brasileirão, a média era de R$ 42, com o Palmeiras cobrando R$ 93. Em novembro, a torcida organizada do Botafogo protestou contra o valor de R$ 200 no “setor popular” do Nilton Santos, acusando a SAF de elitizar um espaço antes símbolo de arquibancada popular.
A camisa oficial virou um dos símbolos mais visíveis dessa nova realidade. No futebol europeu, o preço médio de uma camisa da Premier League em 2024 chegou a quase R$ 600 (a do Chelsea custando R$ 891, por exemplo), representando três décadas de aumentos de preço acima da inflação. No Brasil, camisas como as do Flamengo e Palmeiras podem chegar a R$ 700 e R$ 1.100 respectivamente.
Na prática, uma família de quatro pessoas que queira ir ao estádio, comprar ingressos e vestir a camisa oficial do time passa a disputar espaço orçamentário com itens de primeira necessidade. Do ponto de vista de um fundo de investimento, o ticket médio melhora muito. Do ponto de vista do torcedor, o futebol deixa de ser um hábito semanal e vira um luxo ocasional.
Nada disso significa que o investimento privado seja intrinsecamente ruim para o esporte. Sem capital novo, vários clubes e
ligas simplesmente não sobreviveriam ao ambiente competitivo atual. A profissionalização de gestão, a transparência de balanços e a disciplina de gastos são ganhos reais dessa nova era. O problema é quando o esporte passa a ser tratado apenas como mais uma linha de uma planilha de private equity, sujeita aos mesmos ciclos de comprar barato, alavancar, extrair valor e vender com múltiplo elevado.
Para o mercado de comunicação e marketing, esse cenário traz um desafio estratégico. Em um primeiro momento, a monetização agressiva parece positiva: mais propriedades, mais inventário, mais ativos digitais, mais dados. Mas se a lógica de captura de valor continuar empurrando o torcedor para fora dos estádios, dos pacotes de TV e das lojas oficiais, a curva pode se inverter.
O risco é transformar o fã em mero “cliente de alto valor” e perder justamente o que torna o esporte um ativo único: a escala emocional, a cultura compartilhada, a sensação de pertencimento de massa. Investidores passam, fundos liquidam posições, ligas mudam de dono, mas a marca só sobrevive se o torcedor continuar se vendo nela. E isso exige algo que não cabe em nenhum Excel.