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15 de abril de 2020 - 8h40
Por Omarson Costa (*)
Nossas cidades nasceram com vielas estreitas, alta densidade na área central e uma praça para congregação. Depois, foram abertos os chamados passeios públicos, onde pedestres, cavalos e carruagens conviviam.
Com a popularização do automóvel particular, um dos maiores problemas das cidades virou equacionar como essas máquinas se deslocam e onde estacionam quando ociosas, com impactos na forma de ocupação urbana e no meio ambiente.
Estamos agora perto do epicentro de outra revolução. Em artigo no final de 2017, mostrei que a tecnologia automotiva estava em ebulição com o desenvolvimento do carro elétrico e dos chamados veículos autônomos (AVs em inglês) e que isso iria impactar desde a nossa matriz de transporte até a venda de chicletes, já que os postos de gasolina e suas lojas de conveniência podem estar com os dias contados.
O que poderia ser uma promessa há dois anos e meio, hoje começa a repercutir de forma explícita na economia. Não deixa de ser curioso que na mesma semana em que temos um dia de terror nos mercados por causa do preço do petróleo, a Tesla comemora a produção de seu milionésimo carro elétrico, marca vista com bastante ceticismo anos atrás.
No país que é líder na adoção de veículos com zero emissão de gás, a Noruega, as vendas de carros elétricos ultrapassaram a dos modelos a gasolina e diesel em alguns meses de 2019 numa proporção 60% a 40%. Segundo a Reuters, no geral, a fatia dos elétricos se aproxima rapidamente da marca de 50% da frota. A ambição dos noruegueses, também produtores de petróleo, é parar de vender carros e vans movidos a combustível fóssil até 2025.
Aliás, 2025 tem ares de miragem. Nas previsões de Elon Musk, o visionário CEO da Tesla, e também na do economista Tony Seba, da Universidade de Stanford, o ano trará marcos importantes: a Inteligência Artificial já terá atingido um estágio capaz de peitar o ser humano e haverá a substituição total dos ônibus, carros e caminhões tradicionais por modelos elétricos e autônomos sob demanda.
Uma mudança dessa ordem faria despencar o preço do petróleo e colocaria os países produtores em maus lençóis. Ainda que o calendário de Seba pareça inverossímil, a indústria petrolífera já sente o que pode estar por vir.
O crescimento dos ônibus elétricos na China em 2019 gerou uma queda na demanda por petróleo da ordem de 270 mil barris por dia. Para cada 1 mil ônibus elétricos na rua, 500 barris de petróleo deixam de ser vendidos, enquanto a mesma quantidade de carros economizaria 15 barris.
Tecnologia embarcada
E a tecnologia segue evoluindo. A Tesla parte para o modelo Y, sua quarta geração de elétricos, e mandou um update aos modelos S e X para aperfeiçoar a plataforma de direção autônoma. Junto vieram embarcados Netflix, YouTube e Hulu. Afinal, se você não precisa dirigir, faz o que no carro? Por outro lado, eliminou o acesso a rádio AM e FM. Agora, só conteúdo IP! Você poderá assistir suas séries enquanto o software e a Inteligência Artificial dirigem seu veículo. Nada mal, né?!
Montadoras como Audi, BMW e Mercedes também investem pesado nos módulos autônomos para permitir, por exemplo, que o carro vá procurar uma vaga de estacionamento sozinho. Nem precisa saber onde ele está parado!
Veja aqui vídeo da Audi.
O Uber fez uma encomenda bilionária de SUVs autônomas para a Volvo, uma mudança de paradigma no modelo de negócio, apostando no compartilhamento dos carros. A Lyft, concorrente do Uber, se associou ao Google, que desenvolve também seus AVs. Até a fabricante de smartphones Xiaomi resolveu entrar no negócio e lançar um modelo seu com base num SUV da marca chinesa Bestune.
Para não ficarem pra trás, gigantes como GM e Honda se juntaram no projeto Origin. O modelo leva seis pessoas, não tem direção, acelerador, freio, limpador de para-brisas. Sem frente ou traseira óbvias, parece uma sala de estar sobre rodas. O Origin não chegará às concessionárias. Para experimentá-lo, será necessário utilizar o app de compartilhamento de corridas chamado Projeto Cruise.
Mas e as pessoas estão prontas para comprar carros elétricos?
A conversão ao carro elétrico é mais rápida na China. Fonte: Statista
O consumidor acompanha todo esse movimento com certa desconfiança. Estudo feito pela AlixPartners nos Estados Unidos, Reino Unido, China, França, Alemanha e Itália concluiu que 8 de cada 10 asiáticos trocariam a posse de um carro em favor de táxis-robôs. Nos Estados Unidos, a disposição é de 4 em cada 10, enquanto só 9% aceitariam pagar mais pelos benefícios da direção autônoma.
Segundo a Statista, o consumidor é arredio por causa do preço de aquisição do carro elétrico, da ansiedade com a autonomia do veículo devido à infraestrutura de abastecimento e da percepção de que a tecnologia é imatura. A evolução das baterias, no entanto, fez o preço despencar de US$ 1.160 / kWh em 2010 para US$ 176 em 2018. Ou seja, a bateria de um Tesla Modelo 3 de 75 Kwh caiu de US$ 90 mil há dez anos para US$ 13 mil. E o preço, claro, é um facilitador para os novos adeptos.
O Impacto nas Cidades
Como disse no início, a reconfiguração dos modelos de transporte dará às cidades nova oportunidade de se reinventarem. Mas isso dependerá da capacidade dos setores público e privado de investir na infraestrutura necessária.
O cenário pode ser o de frotas de ônibus autônomos e BRTs navegando sem esforço pelas ruas até pontos determinados com horários sendo transmitidos aos consumidores; aplicativos fazendo corridas compartilhadas com veículos autônomos; táxis-robôs deixando passageiros nas estações de metrô para a próxima perna do trajeto. Com menos carros particulares, os congestionamentos viram história. Mas certamente o segmento de concessionárias será radicalmente transformado e afetado.
Se os consumidores simplesmente trocarem o carro comum por um veículo autônomo, a frota vai aumentar, pois até quem nunca tirou carteira de motorista pode ter um autônomo. Aliás, não haverá carteira de motorista, pois o software irá dirigir o veículo. Qual será a função das auto-escolas e dos DETRANs no Brasil diante de tal cenário ? Os AVs ficarão circulando pelas ruas se não houver vagas enquanto seus donos fazem suas tarefas. O trânsito tende a piorar.
A McKinsey fez um relatório muito interessante sobre a questão da infraestrutura das cidades para esse novo modelo e chegou à conclusão de que o país poderia economizar US$ 850 bilhões por ano com a adoção dos carros autônomos, sendo que mais da metade do valor deixa de ser gasto no sistema de saúde em decorrência de acidentes causados por erro humano.
Outro impacto é no uso e ocupação do solo. Se os carros não precisam parar perto dos donos, o modelo de prédios de estacionamento deixa de fazer sentido, abrindo espaço para parques, shoppings, cinemas ou moradia nas áreas centrais. Em Los Angeles, o mercado imobiliário já iniciou essa tendência.
Para Christopher Leinberger, diretor do Centro de Uso do Solo e Análise Urbana da George Washington University, “o retrofit de estacionamentos será uma das maiores mudanças nos próximos 20 anos”.
Fonte: McKinsey
O desafio maior para o poder público será equacionar a conta da manutenção e modernização da infraestrutura necessária aos carros com Inteligência Artificial num cenário de redução de receita com as tarifas das zonas de estacionamento nas ruas centrais, com impostos sobre combustíveis e também com as infrações. Seria o fim irremediável da “indústria da multa”, para quem acredita nela.
Leia mais: A Ética vai conseguir acompanhar a Velocidade da Luz do 5G?
Outro setor seriamente afetado será o de autopeças. Começando pelo carro autônomo, que não terá volante, passando por todas as peças de motor a combustão que deixam de existir. Esta imagem da Singularity University diz muito sobre este impacto.
A indústria automotiva classifica em cinco níveis a mensuração das capacidades de um veículo autônomo. São eles:
Nível Zero – Sem automação, ou seja, o motorista realiza todas as tarefas,
Nível 1 – Direção Assistida, na qual o veículo oferece recursos como controle de cruzeiro, levando o carro a diminuir a velocidade de acordo com o tráfego, ou assistente de faixa de rolamento, que mantém o veículo na faixa. Mas neste nível o motorista ainda precisa estar no controle.
Nível 2 – Automação Parcial, em que o carro pode auxiliar o controle de velocidade e direção entre as faixas, como fazem o Tesla autopilot, o Volvo Pilot Assist e o Audi Traffic Jam Assist.
Nível 3 – Automação Condicional, a próxima geração da tecnologia de veículos autônomos, que permite aos automóveis ter autonomia sob condições ideais, como estradas com acesso restrito. Ainda é preciso um motorista, mas não precisa ficar com as mãos no volante.
Nível 4 – Alta Automação, em que os veículos podem assumir a direção sem interação humana. A Waymo, divisão de veículos autônomos da Alphabet, desenvolveu esta tecnologia e a está testando em ambientes controlados e ruas públicas.
Nível 5 – Automação Total, na qual um veículo pode assumir o controle em estradas e ruas conhecidas e desconhecidas e não precisa de qualquer intervenção humana. Estes veículos podem circular sob quaisquer condições e uma vez que não precisam de nenhum comando humano serão fabricados sem volantes e pedais
Dilemas Éticos
O Media Lab do MIT criou um experimento chamado Máquina Moral. Tratava-se de um teste com cara de game para descobrir como as pessoas achavam que os carros autônomos deveriam se comportar em situações inesperadas, o chamado “dilema do bonde”. A plataforma viralizou e em cerca de quatro anos recebeu resposta de milhões de pessoas em 233 países.
O dilema é assim: um bonde desgovernado vai em direção a um grupo de cinco pessoas; se você tivesse acesso a uma alavanca que pudesse mudá-lo de trilho fazendo atropelar uma única pessoa, qual a sua escolha?
As respostas da pesquisa variaram muito entre culturas e servem para os fabricantes de carros e autoridades adaptarem o design e a legislação a esses novos casos que podem surgir com veículos sem interferência humana.
Um diretor da Mercedes causou indignação, anos atrás, ao declarar a uma revista que o carro autônomo daria prioridade à vida dos seus passageiros em relação a dos pedestres, se houvesse uma situação limite.
Em 2018, um carro autônomo da Tesla errou na mudança de faixa e bateu contra um muro de concreto, matando seu ocupante. O tribunal da Califórnia decidiu que o piloto automático da empresa foi culpado por distrair a atenção do motorista. O software da Tesla cometeu homicídio culposo ou doloso?
O fato é que nesse processo disruptivo, os carros estão deixando de ser essencialmente um “hardware” para se tornarem um sistema de softwares integrados. Em vez de oficina, atualizações para download. Ladrões? Mais perigoso seria o sistema do carro ser hackeado.
Considerando as longas distâncias, qual o futuro das viagens de carro? Publicidade, Compras e Experiência de Produtos? A BMW fez uma publicidade bem interessante sobre esta experiência.
Como as seguradoras vão definir os prêmios das apólices contra acidente? Rodando um algoritmo para saber quem aceita pagar mais? De quem é a responsabilidade por acidentes? Do fabricante do carro ou do software de navegação da Prefeitura que não instalou um sensor adequado?
O carro pode deixar de ser um problema para as cidades, permitindo o compartilhamento de viagens, a interação, o entretenimento, dando maior eficiência aos deslocamentos urbanos e fazendo sobrar mais tempo para as pessoas se dedicarem ao trabalho, à família ou ao lazer em ambientes menos poluídos.
Como este futuro afeta a sua profissão e/ou sua indústria?
(*) Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet. É colaborador ProXXIma.
Acompanhe meus outros artigos no meu blog – Blog do Omarson: omarson.com.br
Este artigo representa minhas opiniões pessoais. Toda crítica é bem-vinda desde que seja feita com o merecido respeito.