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Opinião

Fazendo as pazes com a ancestralidade

Hoje consigo me sentir confortável na minha própria pele, sentindo orgulho do que sou e do que represento

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27 de novembro de 2023 - 6h00

Falar sobre cabelo para mim é falar sobre identidade, ancestralidade, origem. Sou uma mulher preta, de pele mais clara, nascida no Paraná, mas com família materna oriunda de Rio Branco, no Acre. Amar meu cabelo sempre foi um paradoxo entre ser aceita socialmente em uma cidade cuja cultura eurocêntrica é extremamente arraigada, e manter a minha autenticidade. Como meu convívio familiar se deu mais com a família paterna, todos eram brancos com cabelo liso e, por mais que eu sempre ouvisse que meu cabelo era lindo, nunca me sentia parte. Na escola, da mesma forma, usar o cabelo solto era impossível. Estava sempre de rabo de cavalo ou com coque, pois eu nunca me senti à vontade o suficiente para poder ser eu mesma ou até me sentir bonita naquele ambiente. Os padrões de fato não estavam a meu favor.

Minha mãe, meu exemplo de sucesso, uma mulher preta, acreana, que travou todas as batalhas possíveis em uma cidade do sul e venceu, alisava o cabelo desde a juventude e, por isso, nunca me deixou fazer o mesmo. Para ela era impossível dissociar o sucesso do cabelo alisado, já que todas as referências locais eram mulheres nesse estilo. Uma pena, pois seu black na juventude era lindo e nunca mais voltou a ser o mesmo. Mesmo assim, sempre dizia que não queria o mesmo para mim e que meu cabelo era lindo do jeito que era, natural.

Talvez por rebeldia ou por necessidade, assim que entrei para faculdade de direito da Universidade Federal do Paraná, decidi fazer escova progressiva para alisar mais os cachos e me sentir mais bem aceita. Afinal, eu era uma das nove pessoas cotistas na faculdade inteira, um universo de mais ou menos 1000 alunos. De fato, alisar o cabelo me possibilitou mais passabilidade e aceitação. Meus colegas sempre elogiavam meu cabelo dizendo que ele não era nem liso nem crespo, eram cachos que pareciam ser feitos no salão. Comentários assim me deixavam desconfortável, pois eu não tinha essa preocupação nem vaidade o suficiente para “fazer o cabelo todos os dias”. Ainda, esse “não lugar” que nós pessoas pardas ocupamos – o de não sermos brancas o suficiente para não sermos discriminadas e nem pretas o suficiente por não termos a pele retinta – nos coloca em um questionamento constante sobre quem somos e onde reside a nossa ancestralidade, a nossa negritude.

Conforme a faculdade foi passando e a minha consciência racial foi se tornando cada vez mais forte, decidi parar com os procedimentos capilares e passar por uma transição. Assumir meus cachos naturais era um grito de liberdade e um abraço à ancestralidade da qual eu tanto me orgulhava, mesmo sendo ensinada por uma vida inteira a desgostar.
Após um ano, meu cabelo se recuperou de toda química que o alisava e o desafio agora era gostar de usá-lo solto. O ponto alto da minha aceitação foi quando, ao participar de um evento com mulheres negras, todas elas me elogiaram e disseram surpresas que meu cabelo agora estava lindo, já que antes dava para perceber o meu desconforto, mesmo ele estando mais liso. Essa afirmação de pertencimento me fez um bem imenso e, desde então, não me furto de usar meus cachos soltos, presos, com trança, da forma como eu me sinta mais à vontade.

Passei por tudo isso até a decisão de soltar meus cabelos, e sei o quanto temos o papel imprescindível de empoderar mais meninas, desde os primeiros anos da infância, para não enfrentarem essas barreiras de autoestima. Atuar com o marketing de propósito significa fazer campanhas com intencionalidade, a exemplo do projeto recente da Unilever: “Uma Princesa Puxa Outra”, voltado para crianças entre 3 e 12 anos.

No início de outubro, a linha Seda anunciou parceria com The Walt Disney Company Brasil, PretaHub, Plano de Menina e a ONG Na Ponta dos Pés, para o lançamento de uma animação especial com a princesa Tiana, de A Princesa e o Sapo. Pela primeira vez, a protagonista do desenho soltou os cabelos e aparece com o novo visual em uma série de peças da campanha da linha Juntinhos. Pensando nessas crianças, com cabelos raramente representados na publicidade, precisamos provocar mais discussões coletivas sobre as dores de um contingente que representa aproximadamente 37,5% da população brasileira, ou 63,5 milhões de pessoas que se autodeclaram como pretas ou pardas.

Nessa trajetória, de autoconhecimento, autoaceitação e autoamor, de cura das feridas ancestrais que o racismo estrutural nos impõe, tive que ter muita paciência comigo mesma para de fato entender o meu lugar e o meu papel na luta antirracista. Como mulher preta de pele clara, não posso me furtar de entender as nuances do colorismo no Brasil e me posicionar perante ele como uma crítica contumaz da falaciosa democracia racial que fomos ensinados na escola. Minha obrigação, ao fazer as pazes com o meu cabelo, com a minha ancestralidade e com a minha origem, é de também trazer a pauta antirracista aos ambientes que acesso e que outras mulheres pretas retintas ainda não chegam. Com isso, hoje consigo me sentir confortável na minha própria pele, sentindo orgulho do que sou e do que represento, para que mais mulheres e meninas como eu possam também dar esse grito de liberdade, com os cabelos soltos ao vento, na maior felicidade que se pode ter na conquista diária da autoestima.

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