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Quando começamos a enxergar o invisível

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Opinião

Quando começamos a enxergar o invisível

Enquanto mulheres seguirem assumindo uma parcela desproporcional na distribuição do trabalho de cuidar e, mais ainda, sem o devido reconhecimento, continuaremos com grandes desafios na jornada da equidade de gêneros


14 de novembro de 2023 - 7h58

(Crédito: fran_kie/Shutterstock)

Nas últimas semanas, muito se comentou na imprensa e nas redes sociais sobre o tema da redação da última prova do Enem: Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Confesso que, ao receber a notícia e colocar perspectiva na repercussão, num primeiro momento, guiada pela minha ansiedade de respostas e soluções mais rápidas, pensei que já não estava mais do que na hora. Afinal, o tema não deveria ser tratado como novidade. 

Aos poucos, refletindo sobre o assunto, fui mudando de ponto de vista. Comecei a sentir aquele “quentinho no coração”. Uma sensação de emoção e satisfação do quanto estamos em uma jornada de transformação. Sim, falta muito, mas já existem evoluções. Caminhamos lentamente, mas avançamos bons quilômetros.

Voltei mais de 30 anos no tempo e me reencontrei. Uma jovem de 16 ou 17 anos que realizou duas edições do vestibular da Fuvest. Não lembrava mais dos temas das redações, então busquei referências na Internet. Descobri que no meu primeiro ano de prova, o tema central foi a cesta básica, e como a música “Comida” dos Titãs ajudou a refletir sobre o assunto. No ano seguinte, a dissertação foi sobre a justiça ou injustiça social e os diferentes níveis de qualidade do ensino brasileiro, para o vestibular para universidade pública.

Ambos os assuntos já eram claramente temas de grande impacto social, que ganhavam amplitude na discussão com a sociedade. Ainda distantes de soluções iniciais e ações afirmativas, que apenas depois de muitos anos (e até hoje) são lentamente implementadas, como, por exemplo, a questão de cotas nas universidades. Seguramente, há 30 anos, eu não tinha a mesma consciência social e o mesmo ponto de vista de hoje sobre estes assuntos, mas tinha algum repertório e elementos que faziam parte das discussões presentes.

Por outro lado, se naqueles momentos de prova para o vestibular o tema fosse a invisibilidade do trabalho feminino, o meu texto partiria de impressões puramente pessoais e com pouco repertório. Não só pela minha maturidade à época, mas também o tema não fazia parte das discussões públicas. Na realidade, eu tampouco conseguiria imaginar este assunto como tema de redação há alguns anos. 

Permito concluir nos dias de hoje que, se um assunto aparece como pauta de redação na prova classificatória para o nível superior de educação, isto não apenas faz com que jovens tenham que refletir, mas mostra sinais claros de que o tema está entrando, definitivamente, em nossas agendas. Dentro do meu consistente otimismo, imaginei quantas pessoas se colocaram no lugar destes jovens, refletiram sobre o que escreveriam e, até mesmo, buscaram sobre o tema.

Passei por algumas situações nas quais pessoas do meu convívio trouxeram o tema à conversa. Nesses momentos de troca — claro, cada um com experiências diferentes, mas sempre com foco em aprendizado, discussão e reflexões –, algumas pessoas ficaram no conceito do que entendiam por economia do cuidado, outras levaram tema para a relevância social, e algumas para a discussão de possíveis caminhos de transformação. 

Quando compartilhamos e fazemos reflexões coletivas, vamos gradativamente diminuindo a invisibilidade de alguns fatos e situações. Quando conceituamos, nos parecem até ingênuo que esses temas nunca tivessem se concretizado. Que, por exemplo, uma pessoa jamais passaria à fase adulta, se ela não tivesse sido cuidada em diferentes fases da vida; e que uma sociedade sequer existiria se não tivesse como um dos seus pilares uma parte de sua economia voltada às atividades de cuidado, entre elas os afazeres domésticos como lavar, passar, preparar as refeições, limpar a casa e ainda auxiliar na rotina de filhos, companheiros e outros dependentes, atividades que, de maneira inconteste ao longo da história, têm sido herdada por gerações de mulheres sem uma devida remuneração, reconhecimento e valorização. 

Claro que eu adoraria poder ler as redações escritas por estes jovens, que daqui a alguns anos estarão não só exercendo no mercado de trabalho as profissões por eles escolhidas, mas também serão parte de novas famílias, e diferentes formas delas, que vão construir. Já que não terei esta oportunidade, seguirei acreditando que hoje eles já estejam passos à frente do que eu há vários anos. Não apenas com repertório para retratar a situação, mas propor soluções e caminhos.

Do meu lado, vou aproveitar este momento e contexto para seguir com as minhas conversas e provocações sobre o tema, e de maneira positiva continuar acreditando que vamos pelo caminho certo. Enquanto mulheres seguirem assumindo esta parcela desproporcional na distribuição do trabalho de cuidar e, mais ainda, sem o devido reconhecimento, continuaremos com grandes desafios na jornada da equidade de gêneros e no empoderamento econômico e social das mulheres.

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