O julgamento de Cannes

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Opinião

O julgamento de Cannes

Festival Internacional de Criatividade segue como o lugar onde sonhos são realizados e reputações construídas, mas perda de identidade apontada por criativos e protagonistas da história do evento o mantém na berlinda


25 de junho de 2018 - 12h54

Foto: Eduardo Lopes

Alvo de críticas ferrenhas ao longo dos últimos anos, em 2018 o Festival Internacional de Criatividade recorreu a uma estratégia antiga da publicidade: mudou a conversa. As mudanças no evento não foram mera perfumaria, é verdade. Mas também passaram longe da transformação radical que muitos esperavam e os organizadores chegaram a insinuar no auge da crise de reputação do festival, acusado de ter se tornado uma insensível máquina de fazer dinheiro e gerar lucro para seus acionistas, em detrimento de seu propósito original de celebração da criatividade. Fato é que as promessas oficiais feitas pelo Cannes Lions sempre giraram em torno de ajustes. Se foi o bastante, ainda é cedo para avaliar — colecionar uma série de opiniões destoantes e colocar na balança antes de um veredito final é um exercício que requer tempo, ponderação e maturidade.

A redução no número de prêmios concedidos, validando a opção por se tornar um festival mais seletivo em termos de vencedores, ressoou de forma positiva junto à parte importante do público: os chefes executivos de agências que sabem o valor de um Leão para a construção de uma marca distinta dentro da publicidade, que atraia talentos para seus escritórios e instigue clientes a permitirem conceitos e execuções mais ousadas a partir da confiança de trabalhar com quem entende do assunto. Em entrevistas para os repórteres de Meio & Mensagem, líderes criativos das maiores agências do Brasil, como Sérgio Gordilho e Hugo Rodrigues, presidentes da Africa e da WMcCann, respectivamente, elogiaram a nova determinação do festival por critérios mais rigorosos na avaliação dos jurados. Ambos pertencem a empresas de grupos que se mantiveram fiéis a Cannes, o Omnicom e o Interpublic, mesmo nos momentos de artilharia mais pesada.

Curiosamente, os dois maiores críticos do evento marcaram presença relevante, um ano após colocarem o Cannes Lions na berlinda.

CEO do Publicis Groupe e o homem que ateou fogo no Palais em junho de 2017, Arthur Sadoun subiu ao palco para apresentar a plataforma colaborativa Marcel, a principal razão pela qual justificou, 12 meses atrás, que as companhias de sua holding não inscreveriam peças nem enviariam profissionais para o festival em 2018. No jogo de morde e assopra, aproveitou para anunciar o retorno da Publicis à Riviera Francesa em 2019. Com o cacife reduzido após a saída do WPP sob a justificativa de má condução nos negócios do grupo, Martin Sorrell, por sua vez, foi entrevistado no palco pelo jornalista da New Yorker, Ken Auletta.

Nesta temporada, o papel de atirador de elite a manter Cannes sob ataque coube a uma das raras unanimidades do universo da publicidade — o que amplificou potencialmente o barulho dos disparos. Em entrevista ao Advertising Age, John Hegarty foi generoso na dose de desprezo pela suposta reinvenção do festival. “É um festival de tecnologia, não de criatividade”, “Tudo o que fazem é voltado para aumentar a margem de lucro” e “A maioria dos trabalhos de print é fantasma, dá para ver isso de longe” foram alguns dos tiros certeiros endereçados aos organizadores e participantes.

As palavras do fundador da BBH sintetizam o pensamento dos criativos mais identificados com a força da ideia do que com as ferramentas de entrega, quando o assunto é o diferencial da propaganda diante da invasão do mercado pelas plataformas, ad techs e em tempos de times in-house de anunciantes. O ponto de Hegarty e daqueles com linha de raciocínio similar é que, apesar das novas regras, os prêmios continuam excessivos, e a barra do julgamento, baixa. Outra questão crucial para eles é a de não reconhecer mais Cannes como um habitat natural da criatividade, em meio a tanto conteúdo e propaganda patrocinados por empresas de tecnologia e plataformas de mídia.

Não há dúvida de que o Festival Internacional de Criatividade segue como o lugar onde sonhos são realizados e reputações construídas, em que profissionais mudam de patamar em suas carreiras e onde se encontram anualmente os líderes globais da indústria. Mas essa perda de identidade apontada por parte crucial da audiência e dos protagonistas da história do evento é um alerta vermelho, no momento em que se acende uma vela para cada santo. Em meio a transformações, o maior risco é perder- se do caminho, distante tanto do ponto de partida quanto do eldorado idealizado supostamente à espera na chegada.

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