Remando na Terceira Margem

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Opinião

Remando na Terceira Margem

Embarcar na viagem criativa é um risco, nunca se sabe direito onde vai dar


20 de dezembro de 2016 - 9h00

Foto: Reprodução

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“Cê vai, ocê fica, você não volte nunca mais”, diz a mãe, enquanto o pai caminha decidido na direção da canoa. Ele olha a família, se despede e sai remando pelo rio. Para sempre.

No conto de João Guimarães Rosa, A Terceira Margem do Rio, um pai de família decide seguir o chamado do instinto, deixando para trás tudo aquilo que até então fazia sentido para sua existência. Não é que ele foi embora, só se enfiou no meio do rio e ali ficou. Sempre por perto, como se estivesse entrado em uma outra dimensão, ali mesmo naquele lugar. O motivo fica sem explicação.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a intenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais.” Quem nos conta a história é o filho, que passa o resto da vida girando ao redor do pai que segue remando no rio, numa dança quase sempre silenciosa. João apenas viaja na história do filho, que passa a vida viajando na viagem sem volta do pai. E a gente, por gerações, segue viajando na história do João. Cada um se alimentando da história do outro.

Aquela é uma história sobre criatividade. É sobre seguir uma paixão, fazer dela um projeto de vida. Embarcar na viagem criativa é um risco, nunca se sabe direito onde vai dar. Nem sempre a correnteza ajuda. Às vezes é rio acima, remada atrás de remada, sem muita chance de descanso ou pescaria. Os motivos são quase sempre inexplicáveis de início, mas fazem todo o sentido do mundo quando se olha para trás.

Remador nato, Steve Jobs aponta o sentido do caminho reverso no antológico discurso de formatura de Stanford, em 2005: “não se pode conectar os pontos olhando para frente quando perseguimos uma paixão, quando seguimos os instintos”. Somente quando olhamos para trás toda decisão criativa, por mais fora da caixa que seja, se encaixa perfeitamente no plano das nossas vidas, conforme apontou, um dos maiores criativos de nossos tempos.

Remador nato, Steve Jobs aponta o sentido do caminho reverso no antológico discurso de formatura de Stanford, em 2005: “não se pode conectar os pontos olhando para frente quando perseguimos uma paixão, quando seguimos os instintos”

Quando alguém decide por um caminho criativo, difícil saber se é por desejo, sorte ou sina. Pode ser um passatempo que vira profissão, uma  oportunidade que dura para sempre, um sentimento que não nos abandona, uma obra do acaso ou parte de um plano magistral de infância. Em algum momento a gente gira a chave, cai naquela outra dimensão, gosta e acaba ficando.

Tem gente que vicia e acaba se tornando um navegante serial. É o caso do Elon Musk, líder da Tesla, que em setembro lançou publicamente seu plano de colonizar Marte, por meio de sua SpaceX. Um plano que, segundo sua apresentação, vai levar de 40 a cem anos para se completar. Um grande contador de histórias, ele é capaz de nos entreter com uma ideia magnífica, possivelmente recrutando milhares de seguidores para seu projeto.

Quem é o maior viajante, o pai que entrou na canoa e se mandou, ou Musk, que quer embarcar centenas de pessoas rumo ao Planeta Vermelho? Cada um com sua viagem, cada viagem com sua dimensão. A energia necessária para que se construa qualquer realidade a partir de uma ideia apaixonante não impede que todos os dias se iniciem milhares, milhões de projetos criativos de todos os tipos e dimensões. Somente o tempo vai dizer se uma viagem foi boa ou não.

Muitos de nossos colegas irão dizer que viver do trabalho criativo é um privilégio, enquanto outros tantos vão pensar silenciosamente que viver no fluxo criativo é uma espécie de condição. Não sei se a gente o escolhe ou se é ele quem escolhe a gente. Não importa muito, construir uma ideia, por pouco ambiciosa que seja, e vêla emocionar, engajar, entreter outras pessoas dá um prazer imenso. O que realmente importa é que, uma vez que tomamos o caminho criativo, enquanto durar a jornada, é como se entrássemos naquela terceira margem do rio, em que remamos a favor ou contra a correnteza. O que vale é a intensidade da viagem.

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