Ceagesp: feira também é conteúdo

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Opinião

Ceagesp: feira também é conteúdo

Sinto um efeito calmante sempre que vou; observo o minueto de nossas vidas profissionais, coloco no lugar certo, perdoo quem preciso perdoar, lembro de quem preciso lembrar


2 de março de 2020 - 10h58

Ceagesp 2016 (Crédito: Futura Press/ Folhapress)

A recente imagem desoladora da Ceagesp atingida pela enchente, com milhares de frutas boiando, atividades paradas e prejuízos para quem abastece o entreposto não tira o brilho de uma das mais agradáveis experiências à disposição dos paulistanos. Especialmente nos horários de feira livre do produtor.

Há alguns anos frequento a feira e, mais recentemente, comecei a levar meus filhos junto. Queria que eles entendessem que maçã não dá no supermercado, manjericão não nasce seco e picado dentro do potinho e que os bichos têm partes que, devidamente separadas, viram aquela abstração que eu gosto bastante, a carne.

De tanto ir, comecei a prestar atenção no que acontece comigo e, imagino, com muita gente, quando visita o varejão da Ceagesp. A imensa feira, barulhenta, em que é difícil achar por onde passar e quase impossível arranjar uma cadeirinha para se sentar, tem um papel… civilizatório.

Apesar do mar de gente, nunca vi ninguém reclamar de ter sido roubado (disclaimer: isso não é uma garantia). Por algum motivo fora da minha compreensão, as pessoas ali se nutrem de uma decência inusual. É seguro e familiar.

Uma vez, larguei meu carro numa vaga, fiquei duas horas perambulando pelas bancas e, ao voltar, percebi que havia deixado meu carro aberto. E ligado. Sim, ligado. E estava lá quando voltei!

Deve ser o perfume das frutas, mas todo mundo se trata tão bem, com tanta simpatia autêntica, que você jura não estar em um grande centro global, pressurizado ao máximo pela tensão, pelo estresse e competição.

A barraca que não tem o ingrediente indica a que tem e, a não ser que exista uma câmera de compensação muito discreta e eficiente, ninguém leva nada com isso, exceto deixar o freguês satisfeito.

Nunca vi uma briga. Nunca presenciei um bate-boca. A camaradagem rola solta. As pessoas que estão sempre em pé de guerra com o mundo, brigando nas redes sociais ou ao vivo, deveriam ir mais à Ceagesp.

Pegar as frutas, ver as cores, lembrar da infância, do sítio do avô, cheirar os temperos, descobrir quantas espécies de maçã existem reduz a dor existencial e faz enxergar que a vida bem-vivida é simples e saborosa.

Todos nós gastamos uma parte grande de nosso tempo assistindo a conteúdo via streaming e isso é uma das maravilhas que a tecnologia e o talento humano colocaram à nossa disposição.

Mas a feira livre dos produtores também é conteúdo: você viaja no tempo para entender por que a pimenta, o cravo e a canela foram gatilhos das explorações marítimas dos séculos 15 e 16. Escuta que os árabes comem um tomate que dá em árvore e tem formato de quibe, que também é comida árabe. Aprende que a carambola, apesar do nome tão tupi-guarani, é uma fruta de origem indiana, e não brasileira, e que a manga, outra fruta do Oriente, tem mais efeitos benéficos para a visão do que a cenoura.

Diga que não sabe fazer yakisoba que alguém da banca não só venderá o kit yakisoba como ensinará a fazê-lo. A mesma coisa com a paella, a feijoada e o pernil, e o palmito no caule assado na churrasqueira.

O varejão da Ceagesp também é inclusivo e multicultural. Espanhóis, portugueses, japoneses, homens, mulheres, jovens, velhos, negros, índios, brancos vendem e compram em total tranquilidade. O dono da banca e o funcionário fazem a mesma coisa, de forma que é difícil saber quem é um e quem é o outro.

Tem degustação, tem amostra grátis, tem boa vontade. Pegue apenas um limão e tente comprar. Provavelmente, a pessoa da banca vai fazer um sinal para você simplesmente levá-lo, pois nem compensa o trabalho de pesar, fazer troco e colocar no saquinho. Jamais espere algo assim em um supermercado.

Falando nisso, a Ceagesp (o certo é a Ceagesp, mas todo mundo fala o) também é barata. Chega a 20% em alguns produtos, mas o normal mesmo é de 30% a 40% mais barata, com exceção dos peixes, que, em compensação, são muito frescos.

Outro efeito interessante é na dieta, que fica mais balanceada e saudável: na semana seguinte a um domingo na Ceagesp, você come mais e melhores saladas, mais frutas, proteínas animais que não foram congeladas e tudo é mais gostoso do que se você não tivesse passeado por lá. Pode comparar.

Sinto esse efeito calmante sempre que vou. Observo mais de longe o minueto de nossas vidas profissionais, coloco no lugar certo. Perdoo quem preciso perdoar, lembro de quem preciso lembrar, baixo a bola. E depois vou para casa fazer uma caipirinha de limão-cravo.

Em tempo: assim como o tradicional mercado de peixe de Tóquio foi desalojado depois de décadas para dar lugar às instalações olímpicas, a Ceagesp deve mudar de local mais ou menos logo, para dar lugar a empreendimentos.

Realmente, acho que você deveria se dar uma chance de ir até lá, especialmente num domingo de manhã. Depois vai ficar mais longe, no Rodoanel, talvez a salvo de enchentes, mas sem a bagunça organizada que tanta alegria transmite.

*Crédito da foto no topo: Cassi Josh/ Unsplash

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