Cisnes brancos e surpresas previsíveis

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Opinião

Cisnes brancos e surpresas previsíveis

Quando você estiver projetando o ‘novo normal’ que vamos viver depois que esta crise passar, esteja atento para sua marca evitar as vulnerabilidades psicológicas, organizacionais e políticas


12 de maio de 2020 - 12h31

(Crédito: Ilkercelik/ iStock)

“A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo planos” — John Lennon

Uma das metáforas mais abusadas no mundo dos negócios nas últimas semanas foi a da Covid-19 como um Cisne Negro, título da obra do matemático e especulador Nassim Taleb, publicada em 2007. Quem leu o livro sabe que o autor já previa a possibilidade de uma pandemia, fruto da interação entre sistemas complexos (natureza e economia globalizada). Ele alertava que não era uma questão de impedir viagens ou a globalização, mas que governos, empresas e pessoas precisavam estar conscientes do risco. Trata-se, portanto, de um “cisne branco”, uma crise que se não pode ser evitada, poderia ao menos ser “gerenciada” para não ter consequências tão devastadoras.

Taleb voltou ao tema em um pequeno paper publicado em janeiro deste ano, destacando que teremos custos em reduzir a mobilidade (e a atividade econômica) no curto prazo, mas, se falharmos em fazer isso agora, pode nos custar tudo não nesta pandemia, mas nas próximas que, inevitavelmente, acontecerão. Vivemos em um mundo de riscos sistêmicos e nossas organizações precisam estar preparadas, ou ao menos conscientes, desta realidade. Outros autores e personalidades alertaram para o perigo nos últimos anos, incluindo Bill Gates, em um agora famoso TED de 2015 .

Se o risco já estava identificado há mais de uma década, por que nossas organizações (das empresas aos organismos internacionais, passando por boa parte dos governos) foram tão lentas na sua reação? A resposta nos ajuda a identificar e evitar alguns vieses de julgamento que podem prejudicar a comunicação das marcas no “novo normal” que vai se suceder depois que a crise passar (ou seja, após a descoberta de uma vacina ou de atingirmos a tal “imunidade do rebanho”, o que ainda pode demorar uns bons meses).

A questão é importante, pois, nas últimas semanas, tenho participado de diversas reuniões e eventos (virtuais, obviamente) nos quais existe uma grande e compreensível ansiedade sobre “quando as coisas voltarão ao normal” e como será o “novo consumo”. Para a primeiro ponto, vou parafrasear Anthony Fauci, um dos mais respeitados virologistas do mundo e conselheiro do Trump (sei que é difícil conciliar as duas coisas, mas, de alguma forma, ele consegue): quem decide o tempo agora é o vírus. Podemos abrir todas as lojas do planeta, mas, se os consumidores sentirem que existe um risco concreto de pegarem uma doença que ainda não é tratável, esqueça. Sobre o “novo consumo”, vale lembrar que o hábito é a força mais poderosa do comportamento humano, e “old habits die hard”. É bom lembrar que, em 2003, a epidemia de Sars paralisou a economia de Hong Kong por dois meses, mas pouco tempo depois a vida havia voltado ao normal. Algumas semanas são pouco para mudar nossos hábitos. Mas, se esta situação se estender por meses (uma possibilidade diante de um vírus desconhecido, de um gênero altamente mutável e adaptável), aí sim poderemos ter algumas mudanças duradouras.

“Surpresas previsíveis: os desastres que você poderia ter previsto” é o título de um artigo publicado há quase 20 anos na Harvard Business Review. Os autores apontam para três vulnerabilidades que dificultam a reação das nossas empresas mesmo diante de catástrofes anunciadas: psicológicas, organizacionais e políticas. A minha favorita pertence ao campo da psicologia: o viés de confirmação, ou seja, a amplificação de dados que confirmam uma visão prévia que temos de uma situação (geralmente de que as coisas não são tão ruins quanto parecem ou que temos uma habilidade “acima da média” para lidar com elas), em detrimento de dados que mostram que a situação não é exatamente como pensamos. Neste caso, questionamos fontes, métodos e até mesmo a credibilidade dos mensageiros. Ao longo das últimas décadas, vivi incontáveis discussões com clientes, colegas e concorrentes sobre “problemas” com dados que não estavam “errados”, mas que iam contra uma concepção de comportamento que eles acreditavam ser a certa — o viés de “estar de acordo com o grupo” também pesa muito nestas horas.

Talvez estejamos indo pelo mesmo caminho quando imaginamos que, uma vez que os governos decidam acabar ou atenuar a quarentena, o consumo irá voltar a ser o que era. Se for, pode ter certeza de que vai demorar para acontecer. Diante de situações que geram riscos existenciais, os consumidores passam um longo tempo mais preocupados em recompor sua poupança do que se “recompensar” pelas frustrações. É claro que alguns mecanismos de compensação existem (um deles talvez seja viajar menos, mas gastar mais com utensílios de cozinha e comida feita em casa), mas, no agregado, eles não são suficientes para compensar a falta de confiança e a lembrança da angústia de não saber se vai se estar empregado no mês ou na semana que vem.

A vulnerabilidade organizacional está relacionada com estruturas hierárquicas e operações em silo. Elas funcionam como barreiras para que os executivos na alta direção possam cumprir uma função de “sintetizadores” (mas que, frequentemente, eles imaginam que estão fazendo, por conta do viés anterior). A informação é filtrada conforme interesses de poder corporativo que vão desde datas de recebimento de bônus até cobiça por cargos de chefia. O resultado é uma fotografia no melhor dos casos borrada, quando não completamente distorcida. Este é o tipo de vulnerabilidade mais difícil de superar. Adicionalmente, a suposição de que o problema é responsabilidade de outra área (ou que outra instância está tomando conta da situação) acaba por levar a uma paralisia decisória que só é resolvida quando o problema tomou uma dimensão que já é mais de “controle de danos” do que resolver o mal pela raiz.

As vulnerabilidades políticas estão relacionadas com falhas de pensamento sistêmicas, que não levam em conta as lutas de poder que ocorrem entre governos, organizações da sociedade civil, regulamentações internacionais e sua empresa. Ou superestimam a capacidade de um ator (geralmente, sua empresa ou setor) em influenciar os demais.

Todos esses elementos estiveram presentes na sucessão de decisões que nos colocaram na situação atual. Quando você estiver projetando o “novo normal” que vamos viver depois que esta crise passar, esteja atento para sua marca  ou empresa evitar essas armadilhas.

*Crédito da foto no topo: Vijay kumar/Istock

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