O etnocentrismo, o target e o bolo de fubá

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Opinião

O etnocentrismo, o target e o bolo de fubá

A vacina existe e muitas empresas estão imunizadas, mas, infelizmente, o mercado ainda vê e toca o público apenas ocasionalmente


8 de setembro de 2020 - 12h58

(Crédito: Designer491/ iStock)

A primeira vez que entendi o verdadeiro significado do que é etnocentrismo foi lendo o livro Padrões de Cultura, da antropóloga americana Ruth Benedict, falecida em 1948. Um trabalho maravilhoso sobre o relativismo cultural e sobre como a compreensão do que os outros fazem, porque fazem e sentem somente é compreensível a partir de um mergulho na forma como se organiza a vida do próprio grupo de pessoas.

Já recomendei esse livro a muita gente que se envolve com marketing, comunicação e branding, como uma lição de casa obrigatória. A compreensão do que é etnocentrismo tem um papel operacional. A própria Ruth Benedict, durante a Segunda Guerra, estudou comportamentos dos japoneses para orientar as tropas americanas, nas batalhas do Pacífico. Eles simplesmente não entendiam. Porque os japoneses lutavam de uma forma tão diferente de um exército regular. Essas reflexões deram origem a outro livro famoso da autora, A espada e o crisântemo.

Pouca gente levou a sério minha recomendação de leitura. Meu objetivo não era criar especialistas em antropologia, o que, aliás, eu também não sou. O que eu quis e continuo querendo é deslocar o olhar do nosso próprio umbigo para o mundo das crenças e sentimentos daqueles que são nossos consumidores e clientes. O que eu luto para conseguir em cada novo esforço profissional é enterrar de vez a visão autocentrada do narcisismo que distorce os projetos de branding. Que fazem bem aos olhos ingênuos de alguns e nos afasta daqueles que queremos que nos ouçam. E quanto dinheiro se perde com a dispersão de esforços de marketing e comunicação que pouca gente acaba considerando em seus processos de decisão de compra.

Difícil calcular quantos milhões de reais já foram e ainda são jogados fora por conta do que, um dia, eu chamei de Mal de Rafael. Um episódio que meu amigo Romeo Busarello conseguiu transformar quase em um meme. A origem disso é a incrível miopia de um conhecido meu, o Rafael, que tentou de todas formas me convencer de que Coca-Cola Zero tem algo como 80% de participação no mercado total de refrigerantes. Ele defendia sua convicção dizendo: “Ora bolas, todo mundo que eu conheço toma Coca-Cola Zero!”

Alguém poderia me dizer: “Jaime, que besteira tudo isso. Nem todo mundo é retardado como esse seu amigo. A gente sabe que é preciso olhar nos olhos dos consumidores para planejar nossos projetos”. Pobre Rafael, ele não é nem um pouco retardado. É apenas autocentrado demais. Como, aliás, muita gente em nossa profissão.

Olhar nos olhos é muito fácil. Difícil é olhar com os olhos deles.

Conheci muitos profissionais que sempre tiveram essa hábil sensibilidade. Aprendi muito com eles. Talvez nunca tenham lido a Ruth Benedict e não precisavam disso. Nós, os demais, precisamos sempre de aulas de alteridade.

Há algum tempo, antes da pandemia, fiz algumas perguntas incômodas para algumas pessoas desse nosso mundo profissional. Eu queria saber o quanto elas costumavam aproveitar os mágicos momentos de “encontro com o target de carne e osso”.

Quantas vezes por mês ou por semana você vai supermercado, mesmo que seja para olhar, bisbilhotar, puxar conversa? Resposta: o mínimo possível, prefiro o ronco da moto do Rappi chegando.

Quais as linhas de metrô em que você gosta de girar por aí e aproveitar para uma conversinha como quem não quer nada. Resposta: eu não preciso de metrô.

E da CPTM? Resposta: Deus, me livre e guarde!

Nos aeroportos, você prefere o saguão ou os lounges? Resposta: Que pergunta imbecil. O lounge, né. Afinal eu não gosto do ambiente tipo estação rodoviária.

E feira, tem ido? Afinal, os feirantes são os precursores do marketing de relacionamento. Resposta: Brincadeira, né?

Em geral, as respostas vinham acompanhadas de uma ou duas justificativas. Eu não preciso estar colado nos consumidores para saber o que eles pensam e sentem. Ou, com tanto material de pesquisa e de inputs digitais em mãos, tenho um límpido retrato de quem são eles.

Pessoal, a pandemia vai passar e temos que ir para a rua, para os metrôs, para as feiras, para os saguões… para oxigenar as informações de segunda mão com as quais temos nos alimentado.

O “target” espera por nós no metrô, no ônibus, no shopping, na feira, no bar, no aeroporto, no cinema, nas filas, estádios, restaurantes self service, shows, baladas, parques… Completem vocês.

Lógico que vamos continuar usando e cada vez mais toda a tecnologia fantástica de análise de comportamento de consumidor, à nossa disposição.

Mas a verdadeira vacina contra o etnocentrismo é quando você calça os sapatos do “target”, quando você vê como ele olha para uma determinada gôndola de supermercado, ou quando você entende o que ele sente quando o cliente do posto de gasolina o chamou pelo nome, ou quando os pais ouviram o pulsar de um pequeníssimo coração no ultrassom etc.

Uma vez, um cliente que estava há pouco tempo no Brasil quis ir conosco visitar o “target”, perto do Grajaú, na cidade de São Paulo. Com um olhar distante, um pouco amedrontado, ficamos duas horas conversando com o casal, na residência simples, como só ia acontecer nesses bairros. Foi servido café e bolo de fubá pelo casal, muito felizes e participativos com tudo o que queríamos ouvir sobre suas vidas. Corta! Doze horas depois, o tal cliente que nos acompanhou, um profissional de Kansas City, com seus lá 45 anos, nos ligou. Não havia passado bem à noite e atribuiu e diagnosticou: “O bolo de fubá me fez muito mal. O pedaço que eu experimentei foi o responsável pelas minhas visitas noturnas ao banheiro. ”Bem, socorremos o cliente. Como a Marina e eu, que estávamos juntos na visita, não sentimos nada, pensamos numa outra hipótese para o mal-estar do cliente: nós estaríamos protegidos pois já tínhamos anticorpos que nos protegiam contra o “Fubavid-19”.

A vacina contra o etnocentrismo já existe. Muitas empresas já estão imunizadas. Vão aos “Grajaús da vida”, comem bolo de fubá, convivem com pernilongos ao redor, batem longos papos com o, assim chamado, target e não se “contaminam”. Saem muito mais protegidos de lá. Infelizmente, a maior parte do mercado ainda vê e toca o “target” apenas ocasionalmente. Mais frequentemente mesmo, só atrás de uma tela.

Quando fugimos desses contatos pessoais, viramos o czar naturalista do Drummond.

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade

(Anedota búlgara – Carlos Drummond de Andrade)

*Crédito da foto no topo: Mfto/ iStock

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