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Opinião

A lição da deputada streamer às marcas

A propaganda política, diferentemente da publicidade, envolve a compreensão dos indivíduos para além de sua face ‘consumidora’


28 de outubro de 2020 - 13h03

Among Us (Crédito: Reprodução/ Facebook)

Os olhos do mundo estão voltados nesta semana para o resultado das eleições presidenciais norte-americanas que ocorrem na próxima terça-feira 3. De um lado, Joe Biden, candidato democrata, moderado, pró-globalização, ex-vice de Barack Obama e com uma agenda de desenvolvimento sustentável para seu país. De outro, Donald Trump, um bufão populista, negacionista da ciência e que governa apenas pensando na sua popularidade imediata. O segundo entrou em 2020 liderando as pesquisas de opinião para sua reeleição até que foi atropelado pela pandemia da Covid-19, que criou um inédito caldo de sobreposição de crises — econômica, política, social e sanitária —, desnudando seu despreparo para lidar com assuntos complexos.

Há quatro anos, a candidata do partido democrata Hillary Clinton estava ligeiramente à frente, ganhou no voto popular, mas perdeu no colégio eleitoral, colocando na cadeira mais poderosa do planeta o ex-apresentador do programa O Aprendiz. Mesmo com a atual vantagem de Biden, toda cautela é pouca para evitar o efeito rebote e o gosto amargo de 2016. Esse cuidado evidencia o confuso sistema eleitoral norte-americano onde o voto não é obrigatório. Por conta disso, nas últimas semanas, a maior cruzada do partido democrata e de vários veículos de imprensa daquele país tem sido uma intensa campanha para incentivar as pessoas a irem às urnas.

Da maravilhosa capa da revista Time com um jovem vestindo uma máscara escrito Vote à chamada da CNN com todos os seus âncoras enaltecendo o poder da voz por meio do pleito, as ações nesse sentido são diversas. Uma, no entanto chamou mais a atenção pelo seu toque de inovação: para incentivar o público jovem a ir às urnas, o que mais pode fazer a diferença a favor dos democratas nessa eleição — ao lado dos negros e latinos —, a deputada do partido Alexandria Ocasio-Cortez participou, na noite da terça 20, de uma transmissão ao vivo pelo Twitch jogando uma partida do popular Among Us, jogo criado em 2018 que ganhou status de hype com a pandemia.

Ao lado de sua companheira de partido, a também deputada Ilhan Omar, AOC (acrônimo pelo qual é conhecida) realizou o que talvez seja o evento de “corpo a corpo” com eleitores mais incomum na história recente da democracia norte-americana. Tinham como desafio construir uma nave espacial e tentar se safar de um assassinato — literalmente. A transmissão teve um pico de 439 mil espectadores, tornando-a a política mais assistida na plataforma de jogos da Amazon até o momento, conforme relatado pela empresa de dados Stream Hatchet. A deputada democrata aproveitou a transmissão para discutir questões sociais, como, por exemplo, a diferença entre saúde gratuita e privada com seus seguidores e, é claro, encorajar os eleitores que estavam ao vivo na transmissão a comparecerem às urnas nas eleições presidenciais.

A imagem de Ocasio-Cortez jogando Among Us espalhou-se pelo mundo como um exemplo bem acabado dos novos tempos do marketing político. E aí reside um grande aprendizado não só para partidos e candidatos, mas às marcas de uma maneira geral. Se as eleições dessa semana nos Estados Unidos remontam ao fatídico ano de 2016, que catapultou o conceito de pós-verdade ao léxico global, tendo como pano de fundo para sua propagação a tecnologia e as redes sociais, neste distópico 2020 da pandemia, há algumas lições importantes que profissionais de marketing devem levar em consideração.

A primeira delas é o poder do contexto. Seus eleitores e até seus rivais têm muitos motivos para elogiar Ocasio-Cortez: em vez de usar as plataformas digitais e redes sociais para espalhar fake news ou ficar apontando as falhas dos seus oponentes, ela usou sua popularidade para somar a de um jogo do momento e se posicionar com suas ideias em um serviço de streaming amplamente utilizado por sua base eleitoral. Jogou, vibrou, simulou personagens e, de quebra, deu seu recado de forma contextualizada, sem forçar a barra. Pelo contrário, entrou na conversa, participou dela e gerou índices relevantes de engajamento.

Um segundo aprendizado que AOC traz com esse episódio foi sua meticulosa e eficaz estratégia de potencializar seu alcance. A deputada tem uma presença online estabelecida e se envolve com o público digital de forma quase colegiada. Isso, como a noção de jogar um videogame quando ela e Omar poderiam ter coisas “mais importantes” para fazer, lhe rendeu o desprezo de seus colegas no Congresso. Enquanto esses mesmos congressistas ainda insistem em buscar votos ou transmitir suas mensagens de maneira analógica ou utilizando as redes de forma pouco orgânica, Ocasio-Cortez vai aonde as pessoas estão. E, em 2020, os jovens estão assistindo videogames jogados no Twitch.

Além dos quase 450 mil espectadores que angariou durante a transmissão ao vivo, AOC jogou com uma variedade de streamers do Twitch, incluindo o popular streamer Myth, que também lembrou aos seus quase sete milhões de seguidores na plataforma e outros 2,3 milhões de fãs no Twitter para votarem na próxima eleição. Dessa forma, potencializou sua mensagem e alcance com uma só tacada. Só para efeitos de comparação, quando Donald Trump e Joe Biden transmitem no Twitch seus eventos de campanha, o total de visualizações atinge cerca de 6 mil e 17 mil, respectivamente.

Uma última lição desse episódio é o poder da autenticidade. Na cultura da internet, não há nada mais depreciativo do que ser um turista, alguém com um interesse puramente transacional em uma cena. E não importa o quão sério Joe Biden seja, ou quão cinicamente explorador Trump seja, em certos círculos online, eles sempre serão turistas simplesmente porque estão muito distantes da realidade dos jovens neste universo para fazer o que Ocasio-Cortez fez: observou que havia um jogo que as pessoas adoravam assistir no Twitch, perguntou se alguém queria jogar com ela, e se dispôs a sentar por algumas horas para fazê-lo com quase meio milhão de pessoas assistindo. O segredo do sucesso de Ocasio-Cortez e sua companheira Omar reside na verdade da atitude delas: por um tempo, elas não eram políticas oportunistas, mas uma dupla de streamers do Twitch jogando Among Us.

A dimensão simbólica dessa ação é importante. As duas deputadas não são apenas pessoas famosas jogando um videogame extraordinariamente popular; elas são membros do Congresso norte-americano tentando incentivar a votação de eleitores jovens. E, nisso, elas alcançaram algo que a maioria dos políticos tentam e falham diariamente: pareciam pessoas completamente normais. Elas estavam se divertindo, acusando uma à outra de ser a impostora, torcendo quando ganharam, gritando sobre como elas sabiam o tempo todo quando a impostora foi finalmente revelada.

A propaganda política, diferentemente da publicidade, envolve a compreensão dos indivíduos para além de sua face ‘consumidora’. Um eleitor é um cidadão que tem necessidades, anseios, preconceitos, hábitos e costumes que precisam ser levados em conta cada vez mais também por quem faz marketing para as marcas. Que o exemplo de Alexandria Ocasio-Cortez e as eleições dessa semana nos Estados Unidos possam também iniciar um novo capítulo na interpretação das aspirações populares.

*Crédito da foto no topo: Trendobjects/iStock

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