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Blog da Regina

Saudades da Rê Bordosa

Rê Bordosa é, basicamente, uma mulher liberada, que escolheu a autodestruição como forma de libertação das imposições femininas então vigentes


22 de abril de 2022 - 6h05

Rê Bordosa (Crédito: Reprodução/Instagram/Galeria Angeli)

O anúncio da aposentadoria precoce do cartunista Angeli, diagnosticado com afasia – a mesma doença que, recentemente, interrompeu a carreira do ator norte-americano Bruce Willis -, me trouxe algumas sensações nostálgicas. A primeira foi, obviamente, a de lamentar e me solidarizar com esse artista que faz parte da formação da minha geração. Nunca imaginei que a adolescente periférica que gostava de punk rock e lia as tirinhas de Angeli um dia seria sua vizinha e ficava em êxtase toda vez que o via passar pelas ruas de Higienópolis, sempre com aquele ar de vocalista de banda indie inglesa dos anos 1980.

Integrante da trupe Los Três Amigos ao lado de Laerte e Glauco, morto há 12 anos, Angeli é autor de personagens que se tornaram clássicos na arte dos quadrinhos, como o punk Bob Cuspe e Wood&Stock. Mas foi de uma personagem feminina que veio a sua maior criação: Rê Bordosa. Os três personagens eram os grandes destaques da revista Chiclete com Banana, criada pelo próprio Angeli, que tinha tiragem na casa dos 100 mil exemplares.

Rê Bordosa é, basicamente, uma mulher liberada, que escolheu a autodestruição como forma de libertação das imposições femininas então vigentes. Vivia de bar em bar, à cata de amantes, vodca, cigarros, curtição. Constantemente bêbada e drogada, está sempre, no dia seguinte, curtindo a ressaca e reclamando da vida dentro da banheira. Quando ela não está no balcão do bar (onde geralmente era atendida pelo fiel Juvenal, um dos poucos coadjuvantes fixos da série) ou na banheira destilando seus remorsos, Rê Bordosa está na cama com algum homem – geralmente, o primeiro que lhe paga uma bebida, isso quando ela não se atira sobre ele.

Naquele contexto dos anos 1980, onde se via punks de um lado e a galera disco de outro, o boom das revistas em quadrinhos no movimento undergroud transformou Rê Bordosa em um ícone feminino de sátira à liberação social da década. Beirando os 40 anos, Rê vai contra todas as características femininas criada pelo mundo Marvel e as histórias encantadas da Disney. Ela é politicamente incorreta. Uma personagem autêntica, com atitudes vistas como masculinas e rock’n’roll.

 

Rê Bordosa (Crédito: Reprodução/Angeli)

Em 1986, Rê Bordosa ganhou o prêmio de Pin-Up, porém, seu corpo com gorduras localizadas, seios flácidos, celulites nas pernas e estrias na bunda, reforçavam mais uma vez que ela estava indo contra o ideal tradicional do que é ser Pin-Up, já que ela não ligava para estética, academia ou beleza. Vivendo numa era pós-feminista, Rê só queria saber de curtir a vida mundana com muita bebida e sexo casual. Além de grande aversão ao casamento, filhos e à vida doméstica.

Rê Bordosa viveu quatro anos nessa vidinha, de 1984 a 1987. Foi nesse ano que Angeli tomou uma decisão radical, matou a própria personagem. Um dos motivos: seu sucesso era tanto que ofuscava o brilho dos outros personagens. A edição da Chiclete com Banana com a sequência da sua morte compilada foi a mais vendida da revista, com 110 mil exemplares. E ainda ganhou uma segunda edição.

Nada mais contemporâneo e transgressor do que uma personagem dessas. No entanto, naquele renascer da democracia, Rê Bordosa era símbolo daquilo que não deve ser feito, ainda mais para uma mulher. A personagem reaparece em 2006 no longa Wood & Stock: sexo, orégano e rock’n’roll, dirigido por Otto Guerra. O que marcou sua presença no filme foi a dublagem feita por ninguém menos do que Rita Lee, e confesso que não haveria melhor representação. A Companhia das Letras publicou a compilação Toda Rê Bordosa, em 2012, e prepara, segundo a Folha de S. Paulo, uma seleção ampla dos 50 anos de carreira de Angeli, organizada por André Conti e Carolina Guaycuru, sua mulher.

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