Imagem em reconstrução
Japão quer transformar Tóquio 2020 na mais inovadora da história e provar que pode se reinventar mais uma vez – algo que muitas marcas também procuram
Japão quer transformar Tóquio 2020 na mais inovadora da história e provar que pode se reinventar mais uma vez – algo que muitas marcas também procuram
acontado
23 de março de 2020 - 18h32
Por Márcio Juliboni
Ainda sob o impacto da forte tempestade que passara pela cidade dias antes, Tóquio amanheceu naquele sábado, 10 de outubro de 1964, com previsão de chuva leve. As nuvens, porém, se dissiparam e, às 13h50, um amistoso céu azul assistia ao hasteamento das bandeiras de 93 países no Estádio Olímpico. Ao mesmo tempo, diante de 75 mil pessoas, o imperador japonês, Michinomiya Hiroito (1901-1989), se dirigiu à tribuna de honra. Às 14h, pontualmente, começou a cerimônia de abertura da 18ª Olimpíada de Verão com o desfile das delegações, tendo os gregos à frente. Já perfilados no gramado, os mais de cinco mil atletas que competiriam nos 15 dias seguintes tiveram o privilégio de testemunhar, bem de perto, aquele que é considerado o momento mais marcante do evento.
Yoshinori Sakai, então com 19 anos, conduziu a tocha pelo estádio, subiu 150 degraus e, após saudar o público, acendeu a pira olímpica. O gesto não era apenas parte do consagrado protocolo dos Jogos. Sakai nasceu em 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, poucas horas depois da explosão da bomba atômica que a aniquilou. Sakai simbolizava tudo o que os japoneses queriam transmitir ao mundo com aquela Olimpíada — sobretudo, a sua capacidade de reconstruir um país arrasado pela Segunda Guerra Mundial e colocá-lo em condições de pleitear, novamente, um lugar entre as maiores nações do planeta, com um discurso pacifista e alinhado às potências ocidentais.
Neste sentido, a Olimpíada era o palco perfeito para o Japão projetar uma nova imagem. Afinal, ela seria transmitida para 40 países — um recorde, à época, e o dobro da edição anterior, realizada em Roma em 1960. Além disso, seriam os primeiros Jogos com transmissão ao vivo, via satélite. “Os Jogos de 1964 foram um marco, porque mostraram como o evento pode unir um país em torno de uma causa e permitir que ele compartilhe uma nova história com o mundo”, afirma o americano Rob Prazmark, CEO da 21 Sports & Entertainment Marketing e um dos mais respeitados especialistas em marketing esportivo do planeta, com serviços prestados ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e à Fifa.
Cinquenta e seis anos atrás, a história que os japoneses queriam propagandear passava por suas conquistas nas áreas de infraestrutura, logística, construção civil, indústria e tecnologia. Sete meses antes, o país ingressara na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e apostava na sofisticação de seus produtos para aumentar as exportações. Um dos seus maiores cartões de visita foi a construção da primeira linha de trem-bala do mundo, inaugurada um mês antes dos Jogos. Com um financiamento de US$ 80 milhões concedido pelo Banco Mundial, o projeto e a construção foram coordenados por uma empresa estatal. O chamado Shinkansen permitiu que a viagem entre Tóquio e Osaka fosse feita em apenas duas horas — a metade do tempo gasto com trens convencionais que chegavam, no máximo, a 160 quilômetros por hora. Outras inovações também foram exibidas em 1964. Computadores estrearam na organização do evento, a grama sintética foi apresentada ao público e os cronômetros tornaram-se mais precisos. “Os Jogos de 1964 mostraram, ao mundo, o que o Japão seria nos 50 anos seguintes”, resume Prazmark.
Da mesma forma, a Olimpíada deste ano, que tem previsão de ser realizada de 24 de julho a 9 de agosto, é encarada como uma grande oportunidade de apresentar o que o país pretende ser neste século — e as ambições não são pequenas. Primeiro, os japoneses desejam provar que se recuperaram dos desastres sofridos em 2011, quando um terremoto na região de Sendai gerou um efeito-dominó que culminou num tsunami com ondas de dez metros, no vazamento da usina nuclear de Fukushima, e em milhares de mortos e milhões de desabrigados. Mais uma vez, os Jogos reafirmarão sua capacidade de reconstrução. “Recebemos muita ajuda de todo o mundo, inclusive, do Brasil. Por isso, queremos usar os Jogos para expressar nossa gratidão”, afirma o cônsul-geral do Japão em São Paulo, Yasushi Noguchi. “Ao mesmo tempo, queremos mostrar como está caminhando a reconstrução das zonas afetadas pelo terremoto”, acrescenta.
Não se trata apenas de uma decisão tomada por autoridades entre quatro paredes. A própria população local acredita que isso é necessário. Em abril de 2019, uma pesquisa do ministério japonês de Relações Exteriores apontou que 41% dos entrevistados gostariam que o governo usasse a Olimpíada para apresentar a recuperação daquelas áreas e as medidas que foram tomadas, desde então, para reduzir os danos causados por desastres naturais. As autoridades ouviram o recado não apenas dos eleitores, mas também da própria natureza. No ano passado, duas partidas da Copa do Mundo de Rugby, em Tóquio, foram canceladas devido à passagem do tufão Hagibis pela região, em meados de outubro. “Essa foi uma experiência importante, porque levou nosso Comitê Olímpico a avaliar melhor como lidar com eventuais desastres naturais”, diz Noguchi.
Acertar as contas com o passado recente e evitar que imprevistos atrapalhem atletas e turistas são pontos importantes, mas a maior aposta do governo é fixar a imagem de que o Japão pode ser o país-vitrine da sustentabilidade e da tecnologia do século 21. A iniciativa que melhor simboliza a preocupação dos organizadores com o meio ambiente é a inovação na confecção das medalhas. O ouro, prata e bronze utilizados foram reciclados de aparelhos celulares e eletroeletrônicos descartados. O primeiro-ministro, Shinzo Abe, já afirmou publicamente que Tóquio será a Olimpíada “mais inovadora da história”. É aqui que as marcas encontram uma grande oportunidade de explorar o evento e se projetar. Se, em 1964, o trem-bala desenvolvido por uma estatal foi a estrela, neste ano, o destaque serão as tecnologias de automação e a inteligência artificial criadas por empresas privadas. Um dos projetos mais lembrados por autoridades nipônicas é o dos veículos autônomos, desenvolvido pela Toyota, uma das patrocinadoras oficiais do evento. O veículo, chamado de e-Palette, circulará pela cidade, transportando turistas e atletas. A montadora desenvolveu, ainda, robôs para auxiliar na mobilidade de idosos e pessoas com problemas de locomoção, além da mascote robótica da Olimpíada, batizada de Miraitowa.
Hiro Matsuoka, professor de marketing esportivo na Universidade de Waseda, é mais comedido que o governo nipônico ao tratar da inovação na Tóquio 2020. “Os processos de tomada de decisão, incluindo as considerações políticas para a organização, não são totalmente novos”, afirma. “Mas o uso de inteligência artificial e de tecnologia da informação nas competições e na gestão dos Jogos é muito mais inovador que nos últimos eventos”, completa. A inteligência artificial, aliás, deve ser uma das vedetes deste ano. Além dos veículos autônomos da Toyota, ela é a base do sistema de reconhecimento facial desenvolvido pela NEC, em parceria com a Intel. O objetivo é identificar 300 mil pessoas que circularão no Parque Olímpico, entre atletas, jornalistas, voluntários e organizadores, eliminando filas e problemas com a emissão de credenciais.
Vitrine mundial
Com a expectativa de atrair uma audiência de mais de três bilhões de espectadores e transmissão para praticamente todo o planeta, os Jogos serão fundamentais para reposicionar a marca Japão. Isso porque o modelo que impulsionou sua economia nos últimos 50 anos está perto de se esgotar. De um lado, a China assumiu o papel de fábrica do mundo. De outro, a Coreia do Sul se projeta, cada vez mais, como uma potência em jogos eletrônicos, tecnologias e fenômenos culturais, como o K-Pop, que fascinam os mais jovens.
Para Anderson Gurgel, professor de marketing esportivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a manobra é estratégica para fortalecer o softpower do Japão, isto é, sua capacidade de influenciar o mundo, sem recorrer à força bruta, como as guerras. Ao se apresentar como o país do século 21, em que inovação e tradição se misturam de um jeito único, o Japão procura mexer com o imaginário popular e se transformar em um lugar onde todos querem estar. “Reposicionar-se nesse tabuleiro é fundamental para que os japoneses conquistem a atenção dessa geração jovem e hiperconectada, que se engaja em certos temas”, observa Gurgel.
Munição para isso não falta, já que o país também é pródigo em criar ícones da cultura pop mundial. Basta lembrar que, na cerimônia de encerramento da Rio 2016, o próprio primeiro ministro, Shinzo Abe, se valeu de um deles para divulgar os Jogos deste ano. No vídeo exibido durante o evento, um preocupado Abe se transforma no Super Mario, que protagoniza um dos maiores sucessos da indústria de games, lançado em 1985 pela Nintendo. Apressado, ele cava um túnel entre Tóquio e Rio de Janeiro, a fim de não chegar atrasado à cerimônia. A cena termina com Abe, em carne e osso, emergindo de um túnel no centro do gramado do Maracanã. O Comitê Olímpico japonês também recorreu a personagens famosos para atrair a atenção. Goku, o super sayajin da franquia Dragon Ball, por exemplo, é um dos embaixadores oficiais do Jogos, ilustrando cartazes e outros materiais promocionais.
Ao aliar sustentabilidade, tecnologia e cultura pop, o governo e o comitê olímpico nipônicos abrem uma grande avenida para os patrocinadores. “Todas as marcas buscam situações para rejuvenescer e mostrar que fazem parte do futuro”, resume Gurgel. Este é o caso da Visa. Patrocinadora das Olimpíadas há 30 anos, ela vem se apresentando como uma empresa de tecnologia. “A associação entre os Jogos e a inovação é perfeita para nós”, afirma Rodrigo Bochicchio, diretor de marketing da Visa no Brasil. “No setor financeiro, todos querem se conectar cada vez mais com a inovação, e o Japão é a sua melhor síntese, porque permite que coloquemos nossos clientes no lugar mais avançado do mundo.”
Quando o executivo fala em colocar, não é apenas uma figura de linguagem. A Visa pretende levar cerca de 200 clientes para assistir aos Jogos. Os sortudos serão selecionados em 12 iniciativas de ativações que a companhia está desenvolvendo com parceiros — seis emissores de cartões e duas empresas de consumo. As campanhas com o Bradesco e a Caixa Econômica Federal já estão no ar. É verdade que marcas globais largam na frente, em megaeventos como as Olimpíadas, e os anunciantes menores encontram mais dificuldades para se diferenciar na multidão. “Mas isso não quer dizer que não existam oportunidades de negócio”, diz Matsuoka, da Universidade de Waseda.
A saída mais recomendada para não violar os rígidos direitos de propriedade intelectual do COI é explorar o clima festivo da época. Matsuoka acrescenta: “o contrato não é importante no marketing esportivo; é apenas o começo”. E, como todo atleta sabe, largar na frente e ter os melhores equipamentos não garantem a vitória. “Você precisa dar o seu melhor, dentro das restrições”, diz o especialista. Como o Japão, que transformou uma guerra e um desastre natural em força para se reinventar.
“Pessoas apoiam as empresas que apoiam os Jogos Olímpico”
Com a autoridade de quem se prepara para participar de sua 19ª Olimpíada consecutiva, o americano Rob Prazmark não é apenas um fã apaixonado. É, antes de tudo, um dos maiores especialistas em marketing esportivo do mundo. Em 1985, Prazmark foi um dos idealizadores daquilo que é, hoje, a espinha dorsal do Comitê Olímpico Internacional (COI): o programa TOP (The Olympic Partner), que reúne o pelotão de elite dos patrocinadores e lhes dá o direito de associar, com exclusividade e em todo o planeta, suas marcas aos Jogos. Com passagens por NBC, ABC, ISL e IMG, Prazmark comanda a 21 Sports & Entertainment Marketing, que fundou em 2007, e continua assessorando grandes marcas em megaeventos esportivos. Para o executivo, ainda é cedo para dizer que os Jogos de Tóquio serão os mais inovadores da história, como alardeia o governo japonês. Mas, pelo menos, uma coisa é certa: será uma vitrine e tanto para o Japão e para as marcas que participarem.
Meio & Mensagem — Como a imagem do Japão mudou, desde sua primeira Olimpíada em 1964?
Rob Prazmark — No fim dos anos 1950, o Japão se candidatou à Olimpíada de 1964, porque queria uma vitrine para mostrar ao mundo como o país se recuperou da Segunda Guerra Mundial. Com os Jogos de Tóquio, em 1964, os japoneses exibiram suas novas cidades e sua capacidade tecnológica. Foi um tremendo sucesso e um marco histórico para as Olimpíadas, pois foi um exemplo de como os Jogos podem unir um país em torno de uma causa e como podem ser uma oportunidade para compartilhar, com o mundo, uma nova história. Isso aconteceu, novamente, com a Coreia do Sul, que sediou os Jogos de 1988. Os sul-coreanos quiseram mostrar como se recuperaram da guerra de 1950 a 1953. Foi um caso muito similar ao japonês.
M&M — E agora, em 2020?
Prazmark — O Japão de 1964 era muito baseado na ideia de reconstrução. Hoje, é um país forte, industrializado e muito tecnológico. É um dos líderes da economia mundial. Essa transformação começou em 1964. Os Jogos servirão para mostrar o quão longe os japoneses foram desde aquele momento.
M&M — O governo japonês afirma que esta será a Olimpíada mais inovadora da história. Você concorda?
Prazmark — Nós não sabemos ainda. O governo japonês diz que serão os Jogos mais inovadores, mas o que vejo é que toda Olimpíada é construída a partir das anteriores, do ponto de vista da tecnologia. O que mudou, desde 1964, é a velocidade das transformações, aceleradas ainda mais pela internet. Além disso, as empresas focadas em tecnologia e inovação estão usando suas habilidades para contar suas histórias de um modo mais acurado que anteriormente.
M&M — As Olimpíadas são realmente importantes para que as marcas conquistem consumidores?
Prazmark — Realmente acredito que é muito positivo para todos que patrocinam os Jogos, porque o público sabe que encontrará apenas as melhores marcas envolvidas no evento. E essas pessoas apoiam as empresas que apoiam os Jogos Olímpicos. Há uma relação próxima entre a opinião pública e o suporte das marcas. Já para as marcas internacionais, é uma chance de mostrar a habilidade de ser global e local ao mesmo tempo. Então, você pode ter uma companhia internacional, como a Visa, que também fala ao coração do povo japonês, devido ao apoio aos Jogos locais.
M&M — Muitos afirmam que apenas marcas globais são bem-sucedidas em eventos como a Olimpíada, devido ao grande investimento necessário. O senhor concorda?
Prazmark — Essa é uma pergunta interessante, porque as marcas internacionais sustentam suas iniciativas com muitas ativações para ser bem-sucedidas. Todos consomem Coca-Cola, Visa, Panasonic e Toyota, mas há companhias, como as de tecnologia, que buscam um público diferente. A Intel, por exemplo, busca parceiros de negócios, grandes companhias. Mas, mesmo que não sejam focadas em consumo básico, as empresas que estarão em Tóquio sabem que a importância dos Jogos é que eles são universais. Mesmo que você seja uma empresa local, ainda haverá o time brasileiro, o time americano para apoiar.
M&M — É vantajoso apoiar o evento, mesmo com todas as restrições impostas pelo COI?
Prazmark — Sim, porque só existem três eventos globais: os Jogos Olímpicos, a Copa do Mundo de futebol e o Mundial de atletismo. Só esses três são verdadeiramente globais, e é isso que os torna atraentes para as companhias, porque são os únicos que realmente fazem sua marca aparecer.
M&M — Você afirmou, certa vez, que não precisamos ser atletas para termos espírito olímpico. Como uma marca pode explorar esse conceito?
Prazmark — Acredito firmemente que qualquer pessoa pode agir com espírito olímpico. Não é necessário ser um atleta profissional para conduzir sua vida cotidiana com honra e respeito ao próximo. Acredito que os japoneses se encaixam perfeitamente bem nestes valores e os mostrarão completamente em 2020.
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