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Opinião

Além das boas intenções

A desconstrução de padrões racistas demanda dar lugar a novas vozes e dividir espaços de poder


15 de outubro de 2021 - 13h36

(Crédito: Reprodução)

A Companhia das Letras, maior grupo editorial brasileiro, anunciou que estava tomando iniciativas para combater os efeitos do racismo nas suas publicações e ampliar a diversidade de seus autores. Os planos incluíram a criação do cargo de editor de diversidade, ocupado pelo historiador Fernando Baldriaia, com atuação transversal em todo o grupo, um censo interno dos funcionários e do catálogo da editora, um programa de treinamento com atenção à diversidade, assim como outros projetos editoriais.

“Como o racismo estrutura todas as nossas relações, ele impacta também o ambiente editorial, em que não só a maior parte dos funcionários em postos de direção são brancos como os catálogos são majoritariamente compostos por autores brancos e de origem europeia”, afirmava nota do grupo, divulgada à época. “Por isso é preciso tomar medidas práticas e propositivas, na esteira de outros setores, como as universidades públicas”.

Desde então, diversos lançamentos têm feito parte deste conjunto de iniciativas: obras de Carolina Maria de Jesus, a “Enciclopédia Negra”, em que Flavio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz perfilaram 500 figuras de relevância histórica, além das que estão no prelo de autores como Silvio de Almeida, Cida Bento e um livro de memórias do Cacique Raoni. Isso sem falar da literatura infantil como o novo livro do rapper Emicida e a versão para crianças de “Sejamos todos feministas”, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.

No mês passado, a Companhia das Letrinhas, selo infantil do grupo Companhia das Letras, recolheu do mercado a obra “Abecê da Liberdade: a história de Luiz Gama”, dos autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. A obra foi publicada originalmente pelo selo Alfaguara Infantil, da editora Objetiva, e incorporada, na reimpressão, ao selo Companhia das Letrinhas. Na obra sobre a infância do escritor e advogado Luiz Gama (1830-1882), figura histórica da luta abolicionista no país, texto e ilustrações mostram cenas em que crianças negras no porão de um navio negreiro pulavam corda com correntes e achavam graça em brincar de escravos de Jó enquanto navegavam rumo à escravidão.

Após críticas de leitores, a obra foi prontamente recolhida. Não sem antes causar bastante estardalhaço, especialmente nas redes sociais. “Lamentamos profundamente que esse ou qualquer conteúdo publicado pela editora tenha causado dor e/ou constrangimento aos leitores ou leitoras. Assumimos nossa falha no processo de reimpressão do livro, que foi feito automaticamente e sem uma releitura interna, e estamos em conversa com os autores para a necessária e ampla revisão. Reconhecemos nosso erro e pedimos, mais uma vez, desculpas aos leitores. Estamos dispostos e abertos para aprender com esse processo, para dele sairmos, todos nós, muito melhores”, informa o comunicado oficial do grupo editorial.

Um dos autores do livro, Marcus Aurelius Pimenta, em entrevista ao UOL, explicou que a produção do livro não foi acompanhada por nenhum especialista ou autor negro. “É difícil uma pessoa não se emocionar com a história [de Luiz Gama] e comigo não foi diferente. O José Roberto Torero também se encantou com o personagem e fomos fazer as pesquisas. Não havia muitas fontes, nem tantas informações novas, mas era o suficiente para se preparar uma estrutura”, explica. Para Torero, o livro é um romance histórico para crianças e foi reescrito dez vezes até a versão final. “É um romance, uma obra de ficção. Não há a busca de exatidão histórica. A ideia é ter liberdade para criar”, argumenta.

Este caso da Cia das Letras é emblemático por algumas razões. A empresa assumiu publicamente um compromisso acompanhado de medidas práticas em prol da agenda da diversidade. Por ser o maior grupo editorial do país e saber de seu poder de construção de narrativas e agendamento de questões caras à sociedade foi além e criou uma inédita editoria de diversidade com uma curadoria específica e um plano de lançamentos de autores negros e indígenas.

Mesmo aparentemente cumprindo os requisitos dos bons manuais de diversidade e inclusão, o grupo deixou escapar um erro crasso no seu catálogo. A retratação do grupo explicando que a obra em questão fazia parte do portfólio de uma editora adquirida explica, mas mesmo assim não basta. Incrível e, ao mesmo tempo assustador, ler o relato dos autores sobre os desdobramentos e principalmente, constatar que não houve nenhuma pessoa negra envolvida no processo de produção da obra, originalmente publicada em 2015.

A data da reimpressão é de 2020 após a incorporação da Objetiva à Cia das Letras, mesmo ano em que foi criada na companhia o cargo de editor de diversidade. Não se sabe ao certo se antes ou depois dessa iniciativa. Mesmo que tenha sido antes, sabe-se que medidas desse tipo levam meses, às vezes anos, para serem tornadas públicas. Nesse contexto, não ter havido revisão da obra em questão é no mínimo inaceitável, pois ela tem como tema um personagem central na história brasileira abolicionista.

O racismo atravessa nosso cotidiano, sendo ensinado para nossas crianças, brancas e negras, de maneira perversa, excludente e naturalizada. Nas escolhas dos temas que serão contados, na forma como esses mesmos temas serão contados, na determinação de quem contará as histórias. Nada é mais eficaz para a lógica do racismo do que uma bela história infantil racista.

Infelizmente, o que aconteceu com a Cia das Letras pode ocorrer com outras empresas, pois a desconstrução de padrões racistas, mudanças de paradigmas e reversão de vieses são condutas que exigem muito mais do que boas intenções. Demandam dar lugar a novas vozes e dividir espaços de poder. Exigem uma perseguição obsessiva por um propósito coletivo e transformador.

No mercado editorial, todavia, é importante dizer que outras histórias começam a ser contadas. Histórias feitas por historiadores, literatos e editores, muitos deles negros e negras, que têm o compromisso real e inquestionável com a luta antirracista. Histórias que valem a pena, e que podem acalentar crianças e gente grande de um país que ainda é para poucos.

*Crédito da foto no topo: JBKdviweXI/ Unsplash 

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