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Opinião

Cancelamento: modo de usar

Tão abordada em pautas jornalísticas relativas à pandemia, a questão da saúde mental começou a ser debatida no contexto do BBB


24 de maio de 2021 - 6h00

Eu esperava que a participação da Karol Conká na 21ª edição do Big Brother Brasil fosse uma ótima alavanca para impulsionar ainda mais sua imagem. Uma mulher cheia de personalidade e dons só poderia se beneficiar com essa oportunidade. Talento exclusivo da Suba desde 2017, pensei na Karol também como porta-voz da força feminina. Sua presença no reality show fortaleceria o reconhecimento de seu trabalho e sua marca pessoal, num ciclo virtuoso através do qual uma maior visibilidade ampliaria sua base de fãs e o interesse de anunciantes por novas parcerias, assim que ela deixasse a casa mais vigiada do País.

Ainda que antever cenários adversos faça parte de qualquer planejamento, confesso ter sido inimaginável ver a Karol tombando com a unânime rejeição de 99,17% dos votos, “consagrada” como a eliminada com o maior índice de reprovação em toda a história de 21 anos do BBB. Nem mesmo a própria Karol pôde prever que a sua passagem pela casa a colocaria frente a frente com gatilhos de traumas pessoais profundos, quando não mesmo inconscientes.

A cultura do cancelamento recaiu forte sobre Karol Conká, após sua participação no BBB (Créditos: Divulgação)

Em nossos quatro anos de relação profissional, como parte de um time mais amplo de gestores da carreira da Karol – que conta ainda com uma equipe exclusiva dedicada a seu gerenciamento artístico – naturalmente havia aspectos relativos à sua vida pessoal alheios à Suba. Para cada um de nossos talentos, e não foi diferente no caso dela, aplicamos a mesma conduta: analisamos e compreendemos sua marca pessoal, apontamos caminhos estratégicos de expansão da sua potência, e trilhamos, juntos, essa construção. Mas entendemos que, mais do que marcas pessoais, cuidar de pessoas, num amplo sentido, pressupõe acolhê-las e apoiá-las a despeito de seus equívocos.

Inúmeras vezes marcas clientes nos perguntam se a Suba eventualmente faz gestões de crise, se temos um manual de DOs and DONT’s, se temos ferramentas de inteligência artificial que ajudam a refinar o filtro de nossas curadorias de nomes etc… e minha resposta sempre foi “sim”.

Em se tratando da Karol, no entanto, senti que o que se apresentava não era uma gestão de crise. O “cancelamento” em questão era, na realidade, um convite único para que essa artista tão talentosa pudesse entender em que medida a construção de sua persona pública havia desviado seu foco quanto aos cuidados relativos à sua identidade pessoal.

Apesar de aconselhada por meu entorno mais próximo a me desvincular profissionalmente da Karol, fui ao seu encontro logo que ela deixou o programa, na expectativa de me encontrar não apenas com a figura pública, mas com a Karoline que deu vida a ela. Dessa primeira longa conversa veio seu entendimento sobre a gravidade de sua passagem na casa, e de que ela apenas refletia algo muito maior e anterior, subjacente a todo esse enredo. Tão abordada em pautas jornalísticas relativas aos efeitos da pandemia, a questão da saúde mental começou a ser debatida no contexto do BBB, o que tornou o tema muito mais tangível e presente no debate nacional.

Com o apoio de uma ampla equipe multidisciplinar, mergulhamos juntas e profundamente nessa revisão, e dela naturalmente surgiu na Karol o desejo de ser uma facilitadora da questão da saúde mental, compartilhando de maneira verdadeira e responsável seu processo de busca por autoconhecimento e equilíbrio. Movimento esse que foi tangenciado na narrativa de “A vida depois do Tombo”, documentário sobre a vida da Karol produzido pela Globoplay ao longo dos 50 dias subsequentes ao término de sua participação no reality show. Foi muito gratificante e impactante ver a Karol resumir de forma tão aguda sua caminhada desde então: “A Karol Conká salvou a Karoline. E agora chegou a vez da Karoline salvar a Karol Conká”. A série documental de quatro episódios já bateu todos os recordes de audiência da plataforma, o que evidencia a relevância desta temática.

Assim como na vida, vimos que, na prática, a teoria pode ser bem outra. Mas, apoiada na sua verdade pessoal, a Karol está começando a transmutar o pior momento de sua carreira (segundo suas próprias palavras) em ampliação de sua plataforma de expressão. O que tem permitido que ela, ao generosamente compartilhar com o mundo o cuidado consigo, trate de um tema transversal e central na sociedade contemporânea, contribuindo dessa forma para a desmistificação do tabu em torno da saúde mental e do cuidado psíquico. Minha leitura não busca romancear sobre os motivos pelos quais a Karol foi “cancelada”. Sabemos que ela está dando os primeiros passos num longo processo de reparação, e a única coisa que tem nos mantido firmes e fortes nessa montanha russa é a sólida convicção de que essas são dores de um real crescimento. Da Karol Conká e da Suba.

Nosso mantra profissional – cadência, coerência e consistência – é ancorado na certeza de que, ao assumirmos a responsabilidade de cuidar de algum talento, estamos dando as mãos a pessoas reais, em todas as suas dimensões. Os últimos acontecimentos só reafirmaram nosso compromisso em, a partir da potência de cada um dos nossos clientes, construirmos uma história que, mais que aspiracional, se torne inspiradora. Quem sabe assim, na próxima conversa sobre “gestão de crise”, ao invés de questões como “quantos contratos foram cancelados? quantos seguidores fulano perdeu?”, me perguntem: “qual reflexão profunda esse episódio te convidou a fazer?”.

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