Opinião

Com novas arquiteturas da realidade nos despedimos de 2025

Soberania cognitiva e algoritmos revelam a crise de autonomia que marcas e plataformas ajudam a moldar

Regina Augusto

Diretora Executiva do Cenp e Curadora de Conteúdo do Women to Watch 8 de dezembro de 2025 - 15h43

A sensação recorrente de que esta época do ano nos provoca ganha escala a cada virada de novembro para dezembro: uma sobreposição de compromissos e a pressa em resolver todas as pendências, literalmente, como se não houvesse amanhã após 31 de dezembro. Para ajudar, uma série de estudos e análises é publicada diariamente tentando traçar as principais tendências desta época distópica em que nos encontramos.

Na minha curadoria, fui impactada recentemente por dois movimentos de reflexão profunda que atravessaram o debate público e chegam como um chamado urgente ao mercado de comunicação e marketing: o estudo lançado pela White Rabbit, com apoio do Instituto Itaú, sobre soberania cognitiva; e o artigo do jornalista Rodrigo Mesquita, ex-editor do extinto Jornal da Tarde e diretor da Agência Estado, publicado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, discutindo a relação entre algoritmos, informação e democracia. E como se a língua também nos avisasse, o Dicionário de Cambridge escolheu “parasocial” como a palavra do ano.

Tomados em conjunto, esses três vetores sintetizam a encruzilhada civilizatória na qual profissionais, marcas e plataformas nos encontramos: a disputa pela autonomia mental das pessoas e o quanto o ecossistema de comunicação tem contribuído para fortalecê-la ou corroê-la.

A rigor, soberania cognitiva não é sobre proteger indivíduos da informação, mas sobre garantir condições para que cada pessoa possa pensar com clareza, interpretar o mundo com autonomia e tomar decisões livres de distorções manipulativas. É um conceito sofisticado que se conecta diretamente à saúde da democracia, à qualidade do debate público e, inevitavelmente, à responsabilidade da nossa indústria da comunicação.

O artigo de Rodrigo Mesquita é preciso ao alertar que, quando terceirizamos às plataformas o papel de ordenar o mundo para nós, entregamos também parte da nossa autonomia intelectual. Algoritmos deixam de ser filtros e passam a ser arquiteturas da realidade. Eles modelam o que vemos, o que desejamos, o que acreditamos ser relevante e, em muitos casos, até o que sentimos.

A comunicação, que em outros tempos tinha o papel de mediadora, tornou-se co-produtora dos contornos desse mundo algorítmico, e isso aumenta a responsabilidade dessa indústria. A busca por eficiência extrema, segmentação milimétrica e hiperpersonalização nos levou a um lugar onde falamos com clusters, não com pessoas; otimizamos para métricas, não para significado; e geramos respostas, mas pouco espaço para reflexão.

Essa mudança estrutural não é somente operacional, é epistemológica. O estudo da White Rabbit traz um ponto central: a atenção tornou-se um recurso finito e profundamente vulnerável. Não apenas porque está fragmentada, mas porque está capturada.

Plataformas disputam o tempo mental das pessoas com técnicas comportamentais cada vez mais sofisticadas, moldando comportamentos muitas vezes sem que o usuário perceba. O relatório afirma que o risco não é excesso de informação, mas a redução da nossa capacidade de escolher o que importa.

O problema não é estar conectado demais, mas pensar de menos. Para um mercado que historicamente operou construindo narrativas, símbolos e significado, isso é uma crise existencial. Como comunicar quando a cognição está sequestrada? Como construir marcas se as pessoas já não possuem espaço mental para interpretá-las, apenas para reagir a estímulos?

A escolha de parasocial como palavra do ano de 2025 é mais do que sintomática. Ela descreve relações afetivas unilaterais, típicas do universo dos influenciadores, mas agora amplificadas pela inteligência artificial generativa, que já se tornou “companhia” para milhões de pessoas. Como discuti recentemente neste espaço, há uma epidemia de vínculos artificiais que tentam preencher solidões reais.

O fenômeno parasocial redefine três pilares da comunicação. O primeiro é o da autoridade: quem informa não é quem detém conhecimento, mas quem detém vínculos. Em seguida, o do engajamento: não se disputa atenção, mas afeto. E, por fim, o da influência: não depende mais de escala, mas de intimidade emocional (mesmo que simulada). Esse contexto pressiona marcas e comunicadores a operarem num território perigoso: a exploração da vulnerabilidade emocional como estratégia de conversão.

O ponto de convergência entre esses três pontos é claro. Quando perdemos nossa soberania cognitiva, perdemos a capacidade de decidir nosso futuro, de interpretar escolhas. E quando uma marca contribui para esse processo, ela perde legitimidade e confiança. E confiança, nos lembra o Trust Barometer, da Edelman, tornou-se um dos maiores determinantes de decisões de consumo.

Não se trata de uma questão ética isolada. É estratégica. Um mercado que colapsa a autonomia das pessoas colapsa sua própria sustentabilidade. O que o mercado precisa fazer hoje é um autoexame para continuar sendo relevante.

Uma reflexão mais profunda aponta para três grandes eixos de reação. Ao migrar de mediadora para manipuladora, a comunicação ganhou novos contornos que necessitam ser melhor redefinidos. É preciso abandonar a lógica de que a melhor comunicação é a que faz a pessoa agir sem perceber. O novo valor é o contrário: o que devolve clareza e criticidade para o público.

O segundo aspecto diz respeito a como colocar a inteligência humana de volta no centro. Na era da automação total, criatividade, contexto e curadoria crítica tornam-se diferenciais de soberania cognitiva, tanto na sociedade quanto para as marcas.

Fechando esse tripé está a necessidade de reconfiguração da economia da influência e do papel das marcas nessa lógica. Relações parasociais não podem ser o novo padrão de engajamento. O mercado precisa incentivar vínculos baseados em autenticidade, não em simulação emocional. Se confiança é o novo diferencial competitivo, marcas que protegem a autonomia cognitiva das pessoas ganharão vantagem estrutural.

Assim como sustentabilidade se tornou um imperativo transversal na última década, soberania cognitiva será o eixo estratégico que definirá vantagem competitiva, relevância cultural e responsabilidade social das marcas hoje e amanhã.