João e Maria e a trilha de migalhas do ChatGPT
Por trás dos nossos apps gratuitos, há uma indústria ganhando dinheiro com os rastros que deixamos na internet – e você ainda pagará para ter alguma privacidade
João e Maria e a trilha de migalhas do ChatGPT
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Era uma vez, em um mundo digital, uma história que se assemelha à fábula de João e Maria: usuários curiosos seguem migalhas digitais atraídos pelo apelo das plataformas gratuitas, como o ChatGPT e outros serviços que oferecem tecnologias avançadas sem custo aparente para serem testadas. Assim como a senhora na casa de doces, o ChatGPT e outros players digitais parecem uma aventura inofensiva, oferecendo recursos e facilidades que encantam e seduzem os usuários. Porém, tal como a bruxa que alimenta as crianças para engordá-las, essas empresas têm um objetivo oculto: coletar informações valiosas de seus usuários para aprimorar suas tecnologias e, eventualmente, obter lucro.
Com pouco mais de um mês após seu lançamento, o ChatGPT atingiu a marca surpreendente de 100 milhões de usuários ativos que vieram por uma trilha cada vez mais famosa de doces explorar essa novidade. As interações acontecem por meio de histórias, piadas, dúvidas e assim por diante. Imagine, leitor, a quantidade de informações que já foram coletadas pela OpenAI, startup criadora da tecnologia. Que nessa altura, de bruxa velha não tem nada fora a destreza.
Durante minha viagem ao SXSW, maior festival de inovação do mundo, um dos painéis abordava justamente a questão da privacidade e uso dos nossos dados. Lá, os espectadores ouviram que, em breve, sua próxima assinatura digital não será um serviço de streaming, conteúdo jornalístico ou outro produto que você possa imaginar – na verdade, sua próxima assinatura vai assegurar que você tenha (o mínimo de) privacidade digital.
A palestra trouxe informações assustadoras: o crime digital já movimenta cerca de 10.3 bilhões de dólares somente nos Estados Unidos. E quais são os dois principais motivos? O desconhecimento das pessoas em cuidar de sua segurança digital e o fato de que, em média, há 25 aparelhos conectados à internet em cada casa.
Durante a apresentação, uma das startups presentes para falar do tema foi a Aura, que tem como embaixador e investidor Robert Downey Junior (conhecido pelo papel de Tony Stark na franquia Homem de Ferro). Através da inteligência artificial, a empresa tem o objetivo de proteger os usuários de problemas como roubo de identidade, cyberbullyng, vazamento de dados e acesso a seu histórico bancário, entre outros.
Se você já assistiu ao documentário “O dilema das redes”, da Netflix, sabe bem onde quero chegar: quando os usuários não pagam nada pelo serviço, é porque eles mesmos são o produto. A novidade aqui é que o ChatGPT, a meu ver, criou uma solução para contornar a LGPD — afinal, estamos entregando nossos dados à OpenAI que pode usar essas informações do jeito que quiser.
Nas últimas semanas, outro destaque na indústria tecnológica foi o anúncio da Microsoft. A empresa fundada por Bill Gates implementou, para assinantes, a mesma tecnologia do ChatGPT em suas plataformas de produtividade. Assim, em breve, organizações que utilizam o Microsoft Teams, por exemplo, terão recursos de inteligência artificial disponíveis para seu dia a dia de trabalho e, em contrapartida, estarão disponibilizando suas informações (muitas vezes confidenciais) para terceiros. Ou seja, o mundo corporativo já está ciente dessa possibilidade, mas existe uma questão sobre privacidade que deve, sim, ser discutida.
E não são apenas as grandes empresas de tecnologia que conseguem se beneficiar financeiramente de toda essa revolução digital. Há algumas semanas, um vídeo ensinando a ganhar dinheiro com ferramentas de inteligência artificial viralizou na internet. E explico aqui resumidamente: peça ao ChatGPT produzir o roteiro de um vídeo com até 1500 palavras. Em seguida, cole o texto na ferramenta Pictory, na função “script de vídeo”. Será criado automaticamente, então, um vídeo completo e baseado no texto inserido, também usando IA. Acesse a ferramenta Synthesia e escolha uma pessoa virtual para ser o personagem do seu vídeo. Inclua recortes da fala do personagem no primeiro vídeo. Por fim, poste no YouTube e ganhe dinheiro conforme cresce o número de visualizações.
Diante disso, finalizo este artigo com uma reflexão: em um mundo onde a privacidade se torna cada vez mais escassa, precisamos estar atentos às nossas escolhas e à forma como compartilhamos nossos dados, para que possamos desfrutar dos avanços tecnológicos sem comprometer nossa segurança e bem-estar, e assim, garantir um final feliz para essa história no mundo digital. E como bem disse o Homem de Ferro durante o SXSW, “uma coisa que muitas vezes não nos damos conta, no entanto, é que sem segurança não há presente, nem futuro, nem inovação, nem nada do que está sendo discutido aqui no festival”.
Não estou aqui pedindo para você desinstalar apps, nem para não mergulhar nas novas tecnologias que surgirão. Algumas trilhas de migalhas podem até ter finais felizes. Mas vale um olhar atento e consciente acerca de tudo que se diz gratuito. Afinal, não existe almoço grátis nem casa de doces que não tenha um risco, ainda mais quando este mundo encantado é preparado por tecnologia.
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