Opinião

Tecnofantasias

Muitas delas se tornaram distrações que impedem uma reflexão honesta sobre o que é realmente revolucionário

Ana Erthal

Professora e pesquisadora pós-doc ECA-USP 22 de outubro de 2025 - 6h00

Há um pouco mais de 30 anos, acreditava-se que a nanotecnologia iria revolucionar a vida no planeta. Talvez você se lembre de como a ideia de manipulação dos átomos estava presente no imaginário popular nos anos 1980/1990, a partir dos muitos filmes em que se encolhiam ou aumentavam pessoas e objetos. Nanorrobôs seriam lançados na corrente sanguínea para combater células invasoras capazes de provocar a morte, ou seriam instalados no cérebro para extrair e compartilhar tudo o que existe nele, ou ainda corrigir o DNA de um feto para que o humano nascesse “perfeito”. Mundos habitáveis poderiam ser criados do zero, onde viveríamos eternamente, em paz, sem doenças e sem tristeza.

Há pouco mais de 20 anos, acreditava-se que as redes sociais iriam revolucionar a vida no planeta. Todos poderíamos nos reconectar com conhecidos e compartilhar com desconhecidos, conversando em outros idiomas e, com a mágica de um botão, chegar aos confins do mundo. As redes sociais conectariam as pessoas para solucionar problemas, difundir conhecimento e formar redes de apoio, eliminando barreiras do mundo físico. Eu sempre gostei de provocar os estudantes dizendo que a maior revolução foi o PayPal, que me permitiu comprar luvas de Istambul, poison rings de Singapura e lentes magnéticas adaptáveis a câmeras de celular do Japão (a Shein entendeu). Mas a fantasia da felicidade pela conexão acabou suplantando a revolução silenciosa dos arranjos econômicos.

Somos sempre atraídos pelas fantasias – de uma vida melhor, de um mundo melhor – que dependem da tecnologia para resolver todos os problemas e criar um mundo asséptico, sustentável e sem morte. McLuhan dizia que “o conteúdo de um meio é a suculenta peça de carne que o ladrão carrega para distrair o cão de guarda da mente”. Do mesmo modo, as tecnofantasias em 2025 tornaram-se distrações que impedem uma reflexão honesta sobre o que é realmente revolucionário. Seguindo essa linha de raciocínio, agora é a inteligência artificial (IA) e sua promessa de singularidade que “vai revolucionar” a vida no planeta. Vale a pena investigar esse sonho em particular, seja pelos paralelos com as tecnofantasias anteriores, seja pelas alegações fantasiosas sobre a IA.

Sim, ela é uma tecnologia que vai substituir muitos empregos humanos, como vem acontecendo com a mecanização da mão de obra desde a Revolução Industrial. Sim, é uma tecnologia programada, capaz de fazer conexões com certa autonomia, mas ainda assim é apenas tecnologia pré-programada. Qualquer ser humano mais atento já percebeu suas incoerências, sua linguagem, sua implausibilidade, os escombros de suas desditas. Eu gosto de pensar que a IA é só mais um sonho masturbatório humano: o de projetar nela aquilo que acredita não poder realizar na vida real (mas isso é Freud e fica para outro artigo).

Colocar o tópico da IA nas escolas de criação, portanto, ressoa como estratégia para reduzir cabeças e como mecanismo de servidão às tecnofantasias. O talento na publicidade não poderia jamais emergir de uma grade curricular que privilegie a técnica sobre a criatividade humana ou de uma estrutura pedagógica disciplinar e frígida. Houve um momento na história da propaganda em que as escolas contavam com apoio financeiro das agências de publicidade para manter suas atividades.

Seria legítimo imaginar que as agências se tornassem verdadeiras escolas de criação, do mesmo modo que hospitais inauguram cursos de medicina? Porque os estudantes que se colocam no mercado hoje conhecem centenas de IAs, mas, diante do ambiente de uma agência, desassociam teoria e prática. A escola é totalmente diferente do mundo do trabalho. E esse distanciamento – ou abismo – continuará existindo enquanto se priorizar a tecnofantasia.

Publicitários devem entender de humanos. Devem se aprofundar nos mecanismos dos desejos e necessidades humanas. Não apenas no que se refere ao consumo, mas também aos desejos de conexão, de realização pessoal, ao desejo de viver uma vida feliz e significativa. Devem entender de ética, de direito, de responsabilidade civil, já que cada sentido atribuído a uma mensagem pode provocar desastres em efeito cascata. Esse entendimento profundo da atividade publicitária vem sendo negligenciado nas escolas de criação, a ponto de estudantes talentosos dispensarem o diploma e arriscarem bravamente caminhos independentes, reforçando a irrelevância da sala de aula. Em decorrência das distrações e da falta de entendimento sobre a atividade publicitária, temos hoje o publicitário que é sua própria mercadoria, construída a partir de tecnofantasias e de muitas ferramentas de IA.