O funeral da notícia
A opção para recuperar relevância agora é responder, com extrema honestidade, à seguinte pergunta: No que eu sou melhor do que todos os meus competidores?
Houve um tempo em que os meios de comunicação divulgavam notícias. E nas faculdades de jornalismo se ensinava como um profissional devia ser “imparcial” (tudo lorota). Jornais circulavam com muitas e muitas páginas de informações. E havia uma luta aberta pelo “furo”, o exclusivo, aquilo que só um veículo tinha – e os outros precisavam correr atrás.
Corta para o ano 2025.
A notícia virou commodity quando as agências de notícias passaram a distribuir o mesmo conteúdo a todos os seus clientes. Ao mesmo tempo todos os concorrentes tinham a mesma notícia e as mesmas fotos no mesmo momento – e aí a edição passou a ser o diferencial. Já a desejada imparcialidade virou fumaça quando alguém se deu conta que o jornalista é um ser humano. Que pensa, opina e processa cada informação. Que não consegue “olhar um fato de fora”, sem sentir ou avaliar. É da vida.
Esses conceitos foram definitivamente enterrados quando o mundo digital ganhou vida. De repente tudo era mais rápido e fácil. E foi preciso mudar a lógica de um meio de comunicação, para se adequar ao novo momento. O repórter virou protagonista, contando os fatos – já com análise imediata. Não importa mais quanto foi Flamengo x Corinthians (isso todo o mundo viu por redes sociais ou pela TV), mas o que Fulano e Beltrano acharam da partida, do jogador X, do lance Y, se foi ou não foi pênalti. Nasceu aí a geração dos comunicadores (não confundir com influenciadores, que não praticam jornalismo – mas fingem que sim).
É muito difícil um veículo de comunicação aceitar que sua relevância escapou por entre os dedos. A marca A, B ou C acreditou por muito tempo que sua reputação bastaria para enfrentar a nova realidade. Perdeu. As redes sociais e as big techs embaralharam esse jogo. Primeiro com espaços absurdos de “doação de conteúdos”. Alguém lembra do Google News? Venderam como um maravilhoso outlet para promover as marcas. Na realidade trata-se um espaço sem audiência, mas que autoriza o Google a retirar conteúdos – sem pagar nada – e utilizá-los em outras frentes, do Discover à inteligência artificial. Agora apareceu mais um curativo infame a essa sangria, as páginas das marcas no Discover. Só faltou combinar com a audiência.
Dia desses um meio de comunicação importante da América Latina publicou um furo. Tremendo caso de corrupção do governo. Repercussão gigante. Aí o diretor resolveu medir o impacto da notícia – e os benefícios para a marca. Lançou em uma rede social a seguinte pergunta: Como você ficou sabendo desse furo? A resposta é surpreendente: WhatsApp (53,1%), redes sociais (24,2%), mídia não digital –rádio, TV e Jornal (8,3%), site de quem publicou primeiro (6,7%) e outros (7,7%).
Notícias são commodity. Marcas são irrelevantes. Jornalistas começam a explorar o mundo digital sem as amarras de um veículo formal – e, dessa forma, aproveitando as brechas das big techs. Meios modernos, como The Athletic, entendem e apoiam esse movimento. Virou um agregador de talentos – e, assim, o veículo esportivo número 1 dos EUA e do Reino Unido. Mas, na América Latina, a gestão dos meios ainda aceita as regras das big techs sem reclamar. Mantêm a pose e a estratégia fracassada de valorização da marca. E lá se vão os resultados pelo esgoto.
Bem, mas sempre há uma saída.
A opção para recuperar relevância agora é responder, com extrema honestidade, à seguinte pergunta: No que eu sou melhor do que todos os meus competidores? Simples, não? Mais ou menos. É cada vez menos importante ser o melhor em cobertura factual de alguma região em particular. O digital ultrapassou fronteiras, rompeu divisas. É muito mais interessante ser o melhor em algum conteúdo vertical, que não dependa de mapas. O melhor veículo de receitas, de saúde, de pescaria, de estatística de futebol. Qualquer coisa que efetivamente faça você ser referência informativa. A localização geográfica, pelas notícias, já não basta.
O mundo das notícias segue fascinante, só que estamos na era das narrativas. Ninguém sabe ao certo quantos palestinos morreram nos dois anos de combate em Gaza, por exemplo. Fontes do Hamas falam em quase 70 mil, Israel aposta na metade desse número. A Nobel Maria Corina Machado garante que Edmundo González venceu as eleições para a presidência da Venezuela, no ano passado. Nicolás Maduro diz que não, que o vitorioso foi ele. Você pode achar que é óbvio que a verdade está na primeira opção de cada dúvida, só que há multidões que pensam o contrário. Que querem acreditar na sua verdade, na notícia que circula na sua bolha.
A notícia foi perdendo a graça. Surge de qualquer lugar e, mesmo se não tiver comprovação, causa um estrago danado. Que o diga Guilherme Boulos, então candidato à prefeitura de São Paulo, na véspera do voto. Pior, a mídia tradicional repercutiu, admitiu que o impropério de outro candidato poderia ser verdade. Por isso, a confiança passou a ser no CPF, no rosto e na opinião de pessoas – não mais das marcas. O triste é que esse era o maior valor das grandes empresas jornalísticas. E sumiu. O funeral das notícias carregou algumas empresas para o crematório