Opinião

A favela não aceita ser figurante da inteligência artificial

Para que a IA seja inclusiva, é preciso que favelas deixem de ser objeto e passem a influenciar algoritmos

Joildo Santos

CEO do Grupo Cria Brasil 16 de outubro de 2025 - 14h00

O futuro das marcas é periférico. Isso já não é novidade para quem observa o mercado nos últimos anos. Mas quando a IA molda campanhas de marketing, surge a pergunta inevitável: essas ferramentas dialogam com as periferias ou reforçam exclusão e padronização?

Os números impressionam: 67% dos profissionais de marketing dizem que a IA melhora a qualidade da mídia, e 85% relatam avanços no conteúdo produzido. Mas por trás dessa promessa existe um detalhe incômodo: os algoritmos não foram treinados para incluir a favela como protagonista, mas como massa de consumo.

A favela não cabe nesse molde. Tem códigos próprios, formas singulares de consumir, de se relacionar com marcas e criar tendências que depois são apropriadas pelo mainstream. Quando uma campanha nasce 100% da máquina, sem curadoria humana, essa complexidade se perde. Sobra conteúdo pasteurizado: funciona no asfalto, mas chega estranho na quebrada.

É o paradoxo: a IA que promete personalização entrega padronização. E pode intensificar desigualdades ao precarizar trabalhadores periféricos, com jornadas exaustivas e baixa remuneração.

Não se trata de demonizar a tecnologia. A IA pode ser aliada poderosa, mas só será transformadora se construída com quem conhece o território. Isso exige curadoria humana, equipes diversas e presença periférica nas decisões. Não basta sensibilidade cultural sem ter cultura de favela representada na sala.

A saída é o modelo híbrido: a tecnologia propõe, pessoas criativas e culturalmente conectadas ajustam a mensagem final. E essa equipe precisa incluir vozes da periferia. Sem isso, o risco é falar para milhões sem ser ouvido por ninguém.

São 16 milhões de brasileiros em favelas movimentando mais de R$ 300 bilhões por ano. Isso não é nicho. É potência econômica, social e cultural. Quem não enxergar isso perderá relevância rapidamente.

A pergunta central não é se algoritmos são bons ou ruins para periferias. É: quem ensina os algoritmos sobre as periferias? Se os dados vêm só do asfalto, o resultado será limitado. É como tentar entender o Brasil olhando apenas bairros nobres.

Por isso iniciativas locais são cruciais. Redes comunitárias, laboratórios de inovação e projetos de formação capacitam jovens da quebrada a não apenas consumir IA, mas criá-la. Quando a periferia domina a tecnologia, deixa de ser objeto e se torna sujeito da própria narrativa.

Para marcas, a lição é clara: conectar-se legitimamente com favelas é questão de sobrevivência. Significa investir em dados diversos, contratar profissionais periféricos e validar campanhas com quem vive a realidade do território.

A favela não aceita mais ser figurante. Quer participar da criação, decisão e distribuição de valor, inclusive na construção dos algoritmos que moldarão o marketing do futuro.

O algoritmo pode ser bom para as periferias, mas só se feito com elas, não apenas para elas. Essa diferença define quem segue relevante e quem será engolido pela incapacidade de escutar a quebrada.