O conteúdo vale tudo
Marcas que na conversa “Quem matou Odete Roitman?" revelam que o poder não está em disputar significado
O país voltou a parar diante de uma pergunta que atravessou gerações: “Quem matou Odete Roitman?”. Mas, desta vez, o mistério não ficou restrito à ficção. A reexibição de Vale Tudo se transformou no maior fenômeno comercial da Globo em 2025: 87 ativações publicitárias e 23 marcas patrocinadoras no capítulo decisivo — o maior faturamento da história da emissora em uma novela das 21h.
Entre os anunciantes, nomes como Itaú, Vivo, BYD, Coca-Cola, Dove, Omo, Comfort, Amazon, Paramount, Electrolux, Ram, Boticário, L’Oréal, Uber, Hapvida, Cimed e Serasa. Sete dessas marcas criaram campanhas exclusivas para os episódios finais. Um feito que recoloca a teledramaturgia no centro do debate sobre como publicidade e cultura se fundem em um mesmo enredo.
A estratégia por trás do fenômeno
A lógica não é oportunismo: é semiótica aplicada. Grant McCracken, em seu modelo de meaning transfer, explica que pessoas, personagens e narrativas carregam significados culturais que podem ser transferidos às marcas quando há congruência simbólica. No caso de Vale Tudo, associar-se ao suspense, à ironia e à tensão moral da trama permite às marcas absorver atributos como curiosidade, sofisticação e relevância cultural — operando uma verdadeira transfusão de valores.
Kevin Keller (1993) e Jennifer Aaker (1997) complementam o raciocínio: a força de uma marca nasce do que o consumidor sente e recorda; experiências culturais memoráveis criam vínculos emocionais duradouros. A inserção publicitária, portanto, não é só visibilidade: é reprogramação de significado.
Do sofá ao briefing: quando a publicidade virou cena
A noite do assassinato de Odete Roitman virou também um palco publicitário de alta inteligência narrativa. A Omo respondeu à chamada da novela — “Quem matou Odete Roitman?” — com o provocativo “Para quê tanto mistério?”. A Serasa brincou com o enredo ao lançar “Quem pagou Odete?”, explicando seus serviços de forma leve e contextual. A Subway ressuscitou a personagem em tom de humor, com Débora Bloch viva, saboreando um sanduíche sob o lettering “Com um Sub de 30, quem morre é a sua fome”. E a chamada da próxima novela, Três Graças, levou o jogo ao metaverso da própria dramaturgia: Grazi Massafera, assistindo à cena do crime, ironiza — “Já pensou se essa moda pega?”.
Essas ações exemplificam o poder do marketing de oportunidade, conceito explorado por David Meerman Scott (2011) e testado em casos clássicos como o tuíte da Oreo no apagão do Super Bowl: “You can still dunk in the dark.” Estudos na Journal of Advertising Research demonstram que campanhas oportunas geram mais engajamento e earned media, desde que respeitem congruência com o contexto e a identidade da marca. Timing sem coerência é ruído.
Simbiose de imagens: quando conteúdo e marca se elevam
A telenovela empresta densidade simbólica. A marca, por sua vez, injeta contemporaneidade. Essa relação de simbiose de imagem cria um ciclo virtuoso: o conteúdo ganha tração comercial e a marca ganha capital cultural.
Em Vale Tudo, a Globo reforça sua posição como criadora de relevância cultural; as marcas, como intérpretes da conversa nacional. É publicidade que não interrompe — dialoga. E, ao fazer isso, transforma um intervalo em parte da trama.
O impacto financeiro e simbólico
Com mais de R$ 200 milhões em faturamento publicitário até setembro, Vale Tudo tornou-se o maior case de monetização integrada entre conteúdo e publicidade no audiovisual recente. Mas o ganho mais profundo é imaterial: as marcas que participaram se tornaram parte da memória coletiva.
A psicologia do consumo (Green & Brock, 2000; Escalas, 2004) comprova que histórias geram maior empatia e fixação neural do que mensagens racionais. Inserir-se organicamente em um enredo de alta carga emocional ativa o mesmo circuito cognitivo que as narrativas afetivas, criando lembrança e preferência de marca sem saturação.
Manual prático para agenciar oportunidade
- Mapear congruência semântica – identificar os valores culturais que convergem com a marca.
- Planejar scripts de reação – aprovações rápidas, pré-testadas e consistentes com o tom da narrativa.
- Dar poder de decisão a quem executa – timing é ativo estratégico.
- Medir sentimento, não só alcance – earned media, share of voice e percepção cultural.
- Gerir risco reputacional – evitar ruído e manter coerência ética e estética.
Da visibilidade ao significado
Entrar na conversa sobre “Quem matou Odete Roitman?” não é apenas nostalgia publicitária. É a prova de maturidade estratégica de um mercado capaz de entender cultura como infraestrutura de marca.
Quando agências dominam a interseção entre narrativa, timing e congruência simbólica, elas deixam de ser meras produtoras de anúncios. Tornam-se arquitetas de reputação cultural.
No fim, a pergunta que importa às marcas não é quem matou Odete Roitman, mas quem matou a indiferença do público. E a resposta, neste caso, é inequívoca: foi o conteúdo bem aproveitado — com uma publicidade que entendeu que o verdadeiro poder não está em disputar atenção, mas em disputar significado.