Opinião

Diga o óbvio

Pois ao não fazer isso, você pode estar abrindo espaço para que o absurdo ocupe lugar

Mafoane Odara

Psicóloga, executiva de relações humanas e professora 14 de outubro de 2025 - 6h00

Em dezembro de 2024, a Federação Paulista de Futebol (FPF) lançou uma campanha especial voltada aos pais das crianças que disputam os campeonatos estaduais de base. O vídeo mostrava cenas reais do comportamento agressivo de alguns adultos nas arquibancadas de jogos infantis do Campeonato Paulista: gritos, ofensas, pressão sobre os filhos e até discussões entre torcedores.

A mensagem da campanha era simples, mas poderosa: as arquibancadas devem ser um espaço de respeito, incentivo e alegria. O papel dos adultos nas categorias de base não é vencer o jogo pelos filhos, mas apoiá-los com empatia, incentivo e exemplo.

Parece óbvio, não é, que crianças devam ser estimuladas ao esporte com alegria e segurança, que o papel dos pais e familiares seja torcer e não agredir? Mas o fato de precisarmos reafirmar o óbvio mostra o tamanho do desvio. Quando deixamos de dizer o que é evidente, abrimos espaço para que o absurdo se torne normal.

E se trouxermos essa reflexão para o mundo corporativo, o paralelo é direto. Quantas verdades simples, sobre cuidado, pertencimento e equidade, deixaram de ser ditas, permitindo que o absurdo se instalasse?

“Cuidar é trabalho. E trabalho é também cuidado.” “Filhos não são uma pausa, são potência.” “Você não precisa escolher entre ser mãe e ser profissional.”

Frases como essas podem parecer óbvias, mas precisam ser ditas, em voz alta, com intenção e nos espaços certos. Pois quando o cuidado deixa de ser reconhecido como valor e a maternidade é tratada como obstáculo, abrimos caminho ao preconceito, o desalinhamento e a exclusão.

No esporte, nas empresas ou na vida, o silêncio sobre o óbvio é o terreno fértil do absurdo. E nomear o que é essencial é o primeiro passo para reconstruir a cultura de cuidado que nos torna, de fato, humanos.

Isso porque o óbvio nem sempre é óbvio. O que é evidente para quem vive determinada realidade pode ser completamente invisível para quem ocupa outra posição, seja social, cultural ou hierárquica. Por exemplo, uma liderança que pressupõe que a mudança de estratégia foi compreendida, mas nunca a comunica com clareza, corre o risco de colher metas frustradas, retrabalho e queda no engajamento da equipe. Da mesma forma, para uma mulher negra, o racismo institucional pode ser gritante; já para um gestor branco, esse mesmo racismo pode passar despercebido ou até ser negado.

No campo do trabalho, silenciar o óbvio naturaliza desigualdades. Quando não se fala sobre a maternidade como tema estratégico, é tratada como um “problema” a ser gerenciado e não como uma experiência que desenvolve competências sofisticadas, como escuta, negociação, empatia e planejamento.

O silêncio custa caro. A omissão de verdades simples pode gerar ruídos profundos. Quando a comunicação falha, o time se desalinha. Uma liderança presume que a mudança de estratégia foi compreendida, mas não a comunica com clareza. O resultado? Metas frustradas, retrabalho e queda no engajamento.

Como bem nos lembra Nego Bispo: “Tudo o que nominamos, dominamos.” Quando nomeamos o que é inegociável, nos protegemos de violências institucionais. Quando nomeamos o que aprendemos com nossos filhos, nos blindamos das narrativas que tentam nos diminuir.

Quando a diversidade é defendida, mas não nomeada, as barreiras enfrentadas por mães, mulheres, pessoas negras ou outros grupos sub-representados permanecem intactas. A desconexão se amplia e o senso de pertencimento se esvazia.

Quando valores são apenas subentendidos, comportamentos tóxicos florescem. “Aqui, todo mundo se respeita”, dizem, mas ninguém define o que respeito significa na prática. E assim surgem as piadas ofensivas, os silêncios cúmplices e o abuso de poder.

Quando os aprendizados invisíveis não são nomeados, talentos são desperdiçados. Quantas mães já foram subestimadas ou excluídas por precisarem de flexibilidade, mesmo tendo desenvolvido competências valiosas no cuidado com seus filhos?

Dizer o óbvio não é fraqueza, é estratégia. É alinhar expectativas, validar experiências, proteger vínculos e cultivar ambientes saudáveis. Mas, acima de tudo, é uma forma de resistência amorosa em tempos de ruído, cinismo e pressa. Quando deixamos de dizê-lo, abrimos espaço para que o absurdo ocupe lugar.