Opinião

A confiança como um valor tangível

Reduz atrito, aumenta LTV e sustenta preço. Mas só se for prática, não perfume.

Igor Puga

Líder de marketing e growth do PicPay 13 de outubro de 2025 - 14h00

Se confiança fosse um claim, bastaria tipografia. Se fosse atributo intrínseco, daria para fabricar em brainstorm. Não é. Confiança é um efeito econômico: reduz atrito, derruba custo de aquisição, estica lifetime value (LTV), autoriza prêmio de preço e, em mercados voláteis, sustenta resiliência. Quando a tratamos como peça de comunicação — e não como propriedade operacional — ela vira perfume: some no primeiro vento.

Nos últimos anos, “confiança” virou bordão de temporada. Quase toda marca “lidera com confiança”, “vende confiança”, “é movida pela confiança”. Eu sei: as pessoas precisam de horizonte num mundo ambíguo. Mas quando a confiança vira retórica barata, perde lastro — e o marketing, junto com ela, perde potência interna. Aí nasce o cinismo: “marketing é maquiagem”. A resposta não é gritar mais alto o mesmo slogan. É mudar o tipo de evidência que levamos ao consumidor.

O equívoco de base

É bastante comum confundirmos simpatia com segurança, reconhecimento com reparação e narrativa com garantia de execução. Sorriso em campanha não substitui service level agreement (SLA), muito menos política de reembolso clara. Posts sobre propósito não seguram operação capenga. UX fluida não compensa a ausência de interoperabilidade (integração com outras plataformas, meios de pagamento, parceiros). Confiança é uma cadeia: promessa → entrega → reparo → memória. Trave um elo, quebra o resto.

E mais: confiança não é uma entidade espiritual que paira sobre a marca. É mensurável e auditável. No entanto, por comodidade, medimos o que é fácil e ignoramos o que aponta para causalidade: tempo para primeira compra, taxa de solução na primeira interação, índice de reparação (quantos casos resolvidos sem fricção), estabilidade de serviço (SLI), volatilidade de preço percebida, consistência de prazos. O resultado é um teatro de métricas que não movem gente — e, portanto, não movem margem.

Confiança não é slogan, é margem

Quando o marketing se limita a maquiar, ele é custo. Quando se compromete com alavanca de comportamento, ele é margem. A diferença não está no adjetivo (criativo, digital, data-driven), mas em onde a verba encosta. Se a campanha atua em fricções reais de adoção (desconfiar do cadastro, medo de travar o dinheiro, dúvida sobre cancelamento) e resolve esses gargalos e frustrações com provas operacionais, o efeito é composto:

  • CAC ↓: menos explicação, menos objeção, ciclo de venda mais curto.
  • Churn ↓ / LTV ↑: reparo previsível e interoperabilidade reduzem arrependimento.
  • Preço ↑: risco percebido menor autoriza prêmio (ou mantém demanda frente a concorrentes de preço).

Isso não é poesia, é contabilidade de risco. Confiança não se “pede” ao público. Constrói-se ao reduzir a incerteza antes, durante e depois do uso.

Vamos traduzir “confiança” em pilares operacionais que qualquer CMO pode influenciar junto com Produto, CX e Operações:

Promessa Tácita

O que seu anúncio promete tem camada verificável? Exemplo: prazo com faixa e compromisso de reparo automático se exceder. “Entrega em até ‘x’ dias, ou 10% de crédito instantâneo.” Confiança começa no contrato psicológico, não no roteiro da campanha.

Entrega visível

Publique a temperatura do serviço (status page legível, histórico de uptime, incidentes e suas causas). Dá trabalho? Dá reputação. Marca confiável não esconde o termômetro.

Reparação como premissa

Erros acontecem. O diferencial é quem paga a conta da correção: você ou o cliente? Política de reembolso clara, casos resolvidos na primeira interação, autonomia de front para decidir. Reparar rapidamente rende mais confiança do que não errar nunca (mito improvável).

Interoperabilidade

As pessoas confiam em pontes, não em ilhas. Integre com padrões, parceiros, carteiras, marketplaces. Cada integração reduz o custo mental de experimentar e de permanecer.

Memória pública

Registre erros, correções e aprendizados. O mercado perdoa falhas; o que não perdoa é amnésia conveniente.

Esses pilares transformam “confiança” em atividade, e atividade em margem. Se quisermos sair da acusação de maquiagem, a mensagem precisa fazer três deslocamentos:

  1. Do adjetivo para a prova: em vez de “somos confiáveis”, mostre: “98,7% dos pedidos chegam no prazo; quando não, reembolsamos automaticamente.”
  2. Do mito para o mecanismo: explique o como. Pessoas confiam em mecanismos compreensíveis.
  3. Do triunfalismo para o compromisso: assuma padrões publicamente. “Se descumprirmos, você vê aqui e tem esse direito.” O fecho do anúncio vira contrato público.

Não elimine emoção — ancore-a. O filme ainda emociona, o design ainda importa; só que agora eles carregam evidências. A boa notícia: criatividade fica mais potente quando tem algo honesto para amplificar.

Objeções comuns (e por que não colam)

“Meu concorrente não mostra seus indicadores.” Ótimo. Diferencie-se por coragem. O primeiro a mudar o jogo captura prêmio de transparência.

“Vai dar munição para haters.” Haters já têm muita munição, que se chama experiência real. Transparência, quando combinada com reparação, desarma a crítica desonesta.

“É papo de operação, não de marketing.” Marketing nasceu para construir preferência. Preferência é função de risco percebido. Risco mora em operação. Logo, é seu trabalho.

Se você lidera marca, faça um teste simples: troque 10% do seu orçamento de “confiança” semântica por “confiança” exercitada na prática. Redesenhe uma política de reparo, publique um indicador operacional, destrave uma integração crítica e leve isso para a campanha. Dê ao seu time criativo metal para bater, não só metáfora para polir.

Se der certo — e costuma dar — você terá descoberto que confiança não gera margem por mágica. Ela é a margem: menos atrito, menos devolução, menos reclamação, mais recorrência, mais indicação, mais preço. Se der errado, você pelo menos terá sinais duros de onde ajustar — coisa que nenhum slogan entrega.

Marketing não é maquiagem. É margem. Todo o resto é decoração. E decoração, você sabe, não segura a casa quando venta.