Palcos para poucos — a desigualdade da música no Brasil
Concentração no mercado musical desafia diversidade e exige reforma artística urgente
Num país em que os 5% mais ricos concentram a mesma renda dos 95% restantes, não é de se espantar que o mercado da música também sofra dos mesmos males. A concentração de oportunidades, investimentos e visibilidade atinge em cheio uma das áreas que mais movimenta a economia criativa no Brasil: a música ao vivo.
Poucos artistas dominam os palcos, os contratos, as marcas e os algoritmos. A outra imensa maioria luta por espaço em line-ups repetitivos e sonha com cachês que cubram ao menos o Uber. Parece exagero, mas não é.
Mesmo quando assumimos que o streaming libera terreno, ele também concentra poder. A esmagadora maioria da receita (quase 100%) vem de plataformas digitais, e os algoritmos, por definição, amplificam quem já está no topo. O palco pode estar na internet, mas quem governa esse palco são os mesmos de sempre (parece a gestão pública, né?).
No ao vivo, dados da Abrape mostram que o setor de eventos movimentou R$ 131,8 bilhões em 2024 (alta de 6,2% em relação a 2023). Para 2025, a previsão é de R$ 141 bilhões em consumo. O investimento de marcas também cresceu, e há mais turnês rodando o País do que nunca. Foram quase R$ 100 milhões no evento gratuito “Todo Mundo no Rio” com Lady Gaga em Copacabana, por exemplo.
Mas mesmo com o crescimento de editais milionários e festivais com alto patrocínio, os palcos continuam girando em torno dos mesmos nomes. O investimento, por si, não garante diversidade — especialmente quando a lógica de curadoria continua sendo moldada pelos mesmos algoritmos e apostas comerciais.
Os cachês milionários se concentram em poucos. Enquanto isso, artistas independentes enfrentam um jogo desigual: sem equipe, sem acesso, sem estrutura.
Assim como na sociedade, e como em partes importantes do próprio governo, o mercado musical reproduz a falácia do mérito: “quem é bom, estoura”. Ignora-se, claro, que boa parte dos que “estouram” já largaram dez quilômetros à frente, com empresariado forte, campanhas de marketing robustas e investimento pesado.
Como disse um conhecido empresário do mainstream em um podcast recente: “Com R$ 1 milhão, eu estouro qualquer artista.” A frase, embora cínica, é realista. No Brasil, talento custa caro e quase ninguém pode pagar.
O problema não é a existência de artistas gigantes. O problema é que o ecossistema gira apenas em torno deles. O palco vira latifúndio. A praça vira camarote. O público se torna refém da repetição. E a música, que poderia refletir a diversidade do País, vai se tornando monocromática.
Mas há resistências, claro. Casas e festivais como o Bona Casa de Música e a Casa de Francisca, em São Paulo, ou ainda o Coquetel Molotov em Pernambuco, o DoSol em Natal, o Afropunk Bahia, o Banana em Goiânia, entre tantos outros, seguem apostando em curadoria diversa, fomento à cena local e remuneração mais justa. Apesar de a maioria não ter grandes apoios de marca, seguem fortes (alguns não tão firmes) na cena. A curadoria pode ser um ato político. Assim como o algoritmo privilegia quem já está no topo, a programação pode (e deve) provocar encontros, abrir espaço, bagunçar hierarquias.
Há artistas que usam seu alcance para puxar outros com eles e fazem isso no silêncio, sem discurso heroico. A banda BaianaSystem, por exemplo, é conhecida por abrir espaço para artistas locais em seus shows e colaborar com vozes de fora do eixo, como Yan Cloud e Vandal. Liniker já incluiu artistas trans da cena independente em turnês e clipes, como Verónica Valenttino. Tasha & Tracie mantêm uma estrutura que distribui jobs e visibilidade para fotógrafos, stylists e produtores da quebrada. Baco Exu do Blues criou um festival próprio, o Bluesman, com foco em artistas negros da nova cena. Esses movimentos podem parecer pequenos, mas constroem outra lógica de circulação: mais horizontal, mais arriscada, mais real.
Assim como países que taxam bilionários para redistribuir oportunidades, o mercado da música precisa repensar sua lógica. Não estamos falando de caridade, mas de inteligência de mercado. De cultura como bem público, e não como prêmio de poucos.
As marcas podem ser parte da mudança também: investindo em descoberta, e não apenas em influência. Os contratantes podem ser mais criteriosos e menos reféns do hype. Os programadores de palco, mais ousados e menos previsíveis. E as plataformas, mais interessadas em diversidade do que em viralização.
Se existe uma reforma tributária em curso no País, por que não uma reforma artística no mercado musical?
Não precisamos de Robin Hoods. Sei que há muita gente batalhando por isso no mercado. O que falta é estrutura. É fomento. É planejamento. É conversa. Precisamos de festivais que furem bolhas, de editais com contrapartidas reais, de uma imprensa que cubra mais do que os lançamentos do dia. Precisamos lembrar que cultura não é KPI. É identidade, memória e futuro.
O Brasil gosta de se definir como um país musical. Mas um país musical não pode ser, ao mesmo tempo, um país que escuta tão pouco. Que gira em torno dos mesmos nomes. E que distribui tão mal suas oportunidades.