Opinião

De “Made in China” a “Created in China”

Como o gigante asiático está redefinindo o marketing, as marcas e o varejo

Camilo Barros

Institute for Tomorrow 26 de novembro de 2025 - 18h00

Durante anos, o Ocidente descreveu a China como a “fábrica do mundo”, um país definido por escala produtiva, eficiência industrial e preços competitivos. Essa narrativa, embora verdadeira no passado, já não explica o presente e, muito menos, o futuro. A transformação estrutural que molda esta década é a passagem do “Made in China” para o “Created in China”: uma mudança que reposiciona a China como berço de cultura, estética, modelos de consumo, tecnologias emergentes, ecossistemas digitais e novas lógicas de mercado. E essa mudança não é apenas semântica; ela altera as bases do marketing contemporâneo.

A China, hoje, é menos um lugar que produz coisas e mais um lugar que cria futuros. Um território onde comportamento, dados, IA, cultura, comunidade, entretenimento e varejo são tratados como partes interdependentes de um mesmo sistema. Um país onde marcas surgem do zero e se tornam líderes nacionais em semanas; onde o live commerce movimenta sozinho mais de US$ 350 bilhões anuais; onde plataformas remodelam hábitos de um bilhão de pessoas diariamente; onde patentes deixam de ser instrumento jurídico e se tornam símbolo de soberania criativa.

Essa mudança fica evidente quando observamos gestos simbólicos. Por exemplo, o papel das patentes. Em muitas empresas chinesas, patentes não vivem arquivadas. Elas são expostas, ocupam paredes inteiras, penduradas como medalhas de prestígio. Não é uma estética casual. É uma afirmação de soberania criativa, um lembrete interno de que o país não quer mais ser reconhecido por copiar, mas por inventar. Por construir conhecimento, proteger propriedade intelectual e acelerar a própria produção de futuro.

Essa obsessão por registrar e expor patentes diz algo fundamental: a China não está competindo com o mundo. Está competindo consigo mesma. E está vencendo.

Essa dinâmica se intensifica porque o país opera dentro de um ambiente digital raro no planeta: o ecossistema dos superapps. WeChat, Alipay, Meituan, Douyin, Taobao, Kuaishou — cada um, um continente digital integrado, onde conversar, pagar, comprar, investir, socializar, consumir conteúdo, acessar serviços públicos e realizar transações complexas ocorre dentro da mesma experiência. Superapps não são aplicativos. São infraestruturas sociais, sistemas operacionais que organizam a vida cotidiana. E, ao organizar a vida, organizam também o consumo, a atenção, a descoberta e a transação.

Esse ambiente é fértil para o fenômeno que reescreve o varejo global: o live commerce. Um modelo que não separa conteúdo de transação — porque, lá, eles são o mesmo evento. O entretenimento é a loja. A loja é a mídia. A mídia é o ecossistema de dados. E o dado é o motor que ajusta sortimento, preço, narrativa, experiência e logística em tempo real. É um varejo que não espera demanda; ele modela a demanda diante dos olhos de uma audiência ativa.

É nesse ambiente que floresce uma geração de love brands chinesas, marcas que já não orbitam a imitação, mas o protagonismo. BYD redefine mobilidade elétrica. Nio transforma carros em comunidades. Xiaomi cria ecossistemas de design com uma consistência rara. E Gentle Monster, ainda que coreana, ganhou o mundo pela escala estética que construiu em Beijing e Shanghai, transformando varejo em performance artística. No universo da beleza, Florasis e Perfect Diary operam numa interseção sofisticada entre estética, técnica e storytelling, algo que muitas marcas ocidentais tentam, mas dificilmente alcançam.

Parte dessa força vem da relação íntima entre marcas, cultura e tecnologia. A China trata cultura como ciência aplicada. Em uma conversa com a Qumin, uma das principais agências chinesas de estratégia e criatividade, fica evidente que marketing no país não começa em mídia. Começa em comportamento humano: identidades emergentes, subculturas, estética ritualizada, city walk, o desejo de contemplação no meio de uma sociedade acelerada, movimentos como mountain core, narrativas de identidade local, espiritualidade moderna e uma busca por equilíbrio que reconecta jovens a tradições ancestrais.

As marcas não observam tendências. Elas nascem delas. E isso reconfigura completamente o papel do marketing. Ele deixa de ser intermediário entre marca e consumidor e passa a ser orquestrador de significado. E isso só é possível porque a IA na China não é ferramenta criativa: é infraestrutura cognitiva. Modelos generativos multimodais como o Kling, os sistemas 3D da Tencent, as esteiras criativas de Douyin e Kuaishou e os AI sellers que já conduzem lives autônomas são apenas parte do ambiente.

A IA alimenta tudo: conteúdo, produto, logística, community commerce, precificação, experiência e transação.

Quando observamos esse conjunto, algo se torna claro: a China deixou de ser um lugar que acompanha o futuro. Tornou-se o lugar onde o futuro é prototipado diariamente.

Não haverá “substitutos” ou “novas Chinas” no curto prazo. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, escala populacional, velocidade cultural, disciplina produtiva, poder tecnológico, infraestrutura digital e ambição de Estado. Quem espera que o Vietnã, a Índia ou qualquer outra nação “assuma o lugar” da China ignora a natureza da transformação em curso.

Se queremos entender o que virá para o marketing, o varejo, as marcas, o conteúdo, a economia criativa e a IA, precisamos olhar para a China agora. Não como uma curiosidade distante, mas como a matriz do próximo ciclo de inovação global.

Esse argumento se alinha silenciosamente à tese que venho defendendo: não basta aprender com tendências globais; é preciso compreender os ecossistemas que criam essas tendências. E hoje, nenhum ecossistema cria tanto, tão rápido e de forma tão integrada quanto o chinês.

A China, com seus superapps, suas love brands emergentes, sua obsessão por patentes, sua IA como infraestrutura e seu live commerce como motor econômico, está redesenhando o marketing não apenas como disciplina, mas como arquitetura de futuro.

E se, no passado, fomos ensinados a olhar para o Vale do Silício para entender tecnologia e para a Europa para entender branding, está na hora de aceitar uma nova realidade: o futuro do marketing está sendo escrito em Beijing, Shanghai, Shenzhen e Hangzhou.

E a próxima China, ao que tudo indica, continuará sendo a própria China.