Opinião

O que você tem feito para adiar o fim do mundo?

Sonhar futuros possíveis é manter aberta a porta para caminhos que ainda não existem, mas podem nascer

Mafoane Odara

Psicóloga, executiva de relações humanas e professora 25 de novembro de 2025 - 6h00

Em tempos de reafirmação do compromisso com a justiça climática, uma provocação tão simples quanto profunda ecoa em tempos de urgência. A pergunta de Ailton Krenak, “o que você tem feito para adiar o fim do mundo?”, não é um slogan, nem um alerta distópico, é um convite ético e uma convocação para que cada pessoa, instituição e liderança repense a forma como habita o tempo, o território e os vínculos.

Krenak nos lembra que o fim do mundo não é um horizonte distante, ele já começou, não como um único evento, mas como uma sequência de rupturas silenciosas. Cada rio contaminado, cada floresta destruída, cada corpo descartado pelo racismo estrutural, cada cultura silenciada e cada desigualdade naturalizada representa um fragmento desse colapso. Para muitos, o apocalipse não é um medo futuro, é experiência herdada: povos indígenas, populações negras, periféricas, migrantes e tantos outros já vivem há gerações dentro desse fim do mundo, onde o que para alguns é previsão, para outros é memória, paisagem e rotina.

Imagine uma família em um bairro de classe média alta de uma grande capital brasileira, onde a violência urbana é apenas uma possibilidade distante, discutida apenas quando surge uma notícia alarmante; agora compare com outra família, a poucos quilômetros dali, vivendo em uma periferia marcada pelo crime organizado, ausência do Estado e infraestrutura precária, onde crianças aprendem a se proteger de tiros, rotinas são moldadas por disputas territoriais e o medo não é ameaça futura, mas rotina cotidiana. Enquanto uns debatem quando o mundo pode piorar, outros já vivem há gerações dentro desse “pior”, onde violência, fome, racismo ou crises climáticas não são temas de discussão, mas experiências herdadas, normalizadas e repetidas.

Então, quando Krenak fala em adiar, ele não propõe espera nem resignação, propõe movimento. Adiar o fim do mundo é um gesto ativo de cuidado e reinvenção: cultivar vínculos, solidariedade, cultura, território, ancestralidade e imaginação. É dançar quando esperam imobilidade, contar histórias quando tentam silenciar, proteger rios e florestas quando querem transformá-los em mercadoria, educar para autonomia e consciência, não para obediência. É lembrar, com firmeza e ternura, que o planeta não é recurso: é parte inseparável do que somos.

Quando essa reflexão entra no ambiente organizacional, ela ganha outra dimensão: empresas não são apenas estruturas econômicas, mas ecossistemas humanos que moldam vidas, territórios e narrativas, o que exige das lideranças uma pergunta essencial: “a cultura que cultivamos amplia futuro ou acelera esgotamento?” Adiar o fim do mundo nas organizações é cuidar das relações com responsabilidade, tomar decisões considerando diferentes gerações, incluir múltiplas vozes como fonte de inteligência, e não como concessão, e agir agora, sem delegar transformações urgentes para um futuro hipotético. No fundo, talvez adiar o fim do mundo seja escolher diariamente entre produzir ou cuidar, controlar ou cooperar, repetir velhos padrões ou criar novas formas de trabalhar e existir.

Por exemplo, diante do mesmo desafio, cortar custos e aumentar eficiência, duas empresas revelam caminhos opostos: uma decide sozinha, sem diálogo, priorizando números e acelerando processos à custa de exaustão, medo e perda de confiança; a outra, começa perguntando, escuta diferentes vozes, redesenha rotinas, investe em formação e, quando necessário, faz transições com dignidade e responsabilidade. Enquanto a primeira acelera o fim do mundo ao tratar pessoas como peças descartáveis, a segunda o adia ao reconhecer impactos humanos e transformar cuidado em estratégia, diversidade em inteligência e ação presente em compromisso com o futuro. No fundo, o que diferencia organizações não é o problema que enfrentam, mas como escolhem existir diante dele, deixando como legado uma ferida ou uma possibilidade.

E é justamente nesse ponto que entra um recurso muitas vezes subestimado, a imaginação. Imaginar ainda é um ato revolucionário. Sonhar futuros possíveis é manter aberta a porta para caminhos que ainda não existem, mas podem nascer. Como nos lembra Krenak, o sonho é uma tecnologia ancestral, uma forma de conhecimento que sustenta a esperança e orienta o movimento. Sem imaginação, o futuro apenas repete velhos padrões; com imaginação, ele se reinventa, se expande e cria espaço para outras formas de viver, decidir e existir.

O convite permanece aberto, e agora ele tem urgência: o que você tem feito, hoje, para adiar o fim do mundo? Adiar o fim do mundo não é gesto grandioso nem abstrato, é escolha cotidiana, política e humana. É recusar o cinismo, o cansaço e a ideia de que nada pode mudar. É afirmar que ainda há mundos possíveis e que eles dependem de pessoas dispostas a imaginar, cuidar, construir e agir. Porque o futuro não chega pronto, ele é obra e a obra começa no agora, com cada decisão, cada relação, cada coragem.