Gigante inconsciente
O Brasil, com toda a sua potência criativa e diversidade cultural, poderia ser pioneiro em um novo modelo de comunicação ética, diversa e sustentável
Em David com a cabeça de Golias, Caravaggio pinta o instante em que o pequeno vence o gigante — não pela força, mas pela coragem de desafiar o poder. Em um país onde o racismo estrutural se disfarça de modernidade, talvez o ato de denunciar seja o novo gesto de Davi: o momento em que alguém, cansado do medo, decide enfrentar o sistema.
Vivemos em um país em que mais da metade da população se autodeclara não branca, mas a representação — nas empresas, nas mídias e no poder — segue nas mesmas mãos. Quantas vezes ainda veremos pessoas brancas sendo escolhidas, enquanto corpos negros seguem à margem, mesmo com trajetórias brilhantes e legados incontornáveis?
Há leis, mas não há prática. Há slogans, mas não há mudança. Como me disse recentemente Samantha Almeida, uma das vozes mais lúcidas da publicidade brasileira, “a diversidade é uma porta aberta que ainda dá para o mesmo salão.” O mercado fala sobre inclusão, mas prefere repetir padrões. A cor muda nas campanhas, mas não nas lideranças.
Enquanto o mundo se reúne na COP30 e o Brasil tenta vender ao planeta a imagem de um país verde e plural, há uma ironia dolorosa em ver que poucos brasileiros vivem o país que o marketing anuncia. Um príncipe europeu é recebido com honras para premiar a “inovação sustentável”, mas quantas vozes negras são convidadas a falar do meio ambiente, da economia, da vida real? Escutamos o estrangeiro, mas seguimos surdos aos nossos.
Essa contradição é o retrato fiel de uma sociedade que exporta discursos de modernidade, mas continua importando o aval da monarquia, do norte, do branco. A publicidade, nesse cenário, age como espelho e como amplificador — perpetuando o mesmo enquadramento.
Nos bastidores, a desigualdade é ainda mais evidente. Artistas, jornalistas e executivos brancos acumulam salários e prestígio, enquanto profissionais negros, mesmo com a mesma competência, permanecem invisíveis. No discurso público, chama-se isso de meritocracia; na prática, é a estrutura disfarçada de neutralidade. O “woke” virou um termo usado para desqualificar a consciência racial, como se pensar a desigualdade fosse uma moda passageira e não uma urgência moral.
O entretenimento e a mídia seguem reforçando o ciclo. As grandes plataformas financiam histórias onde corpos negros aparecem como violência, miséria ou culpa — enquanto produzem séries e campanhas que romantizam o privilégio branco. A cada ano, dezenas de títulos falam sobre os dramas da elite, mas quantas narrativas negras ocupam o mesmo espaço?
No mesmo mundo que aplaude causas, há marcas que continuam a operar sem bússola ética. Onde está a régua moral do mercado? Até que ponto estamos dispostos a aceitar a contradição em nome do contrato?
O Brasil, com toda a sua potência criativa e diversidade cultural, poderia ser pioneiro em um novo modelo de comunicação ética, diversa e sustentável. Mas seguimos esperando o aplauso de fora para acreditar em nós mesmos.
A pergunta que fica é simples e urgente: seremos capazes de mudar por convicção ou só depois que o estrangeiro aplaudir? Por uma vez, talvez devêssemos ser o precursor — e não o seguidor — daquilo que dizemos defender.
O futuro só será possível quando não precisarmos mais de um “David” para enfrentar o “Golias” do racismo — quando o gigante finalmente aprender a ouvir.