Trabalho criativo 2.0
Como a IA está redefinindo a carreira júnior, a dupla de criação e o novo profissional de agência
A McKinsey estima que cerca de 30% das horas trabalhadas no mundo poderão ser automatizadas até 2030. É um dado que, à primeira vista, desperta apreensão, mas também revela uma oportunidade. Afinal, se a máquina assume parte da execução, o que sobra para o humano? A resposta não está na substituição, e sim na requalificação.
Os dados mostram que as funções menos afetadas pela automação são justamente aquelas que dependem da imaginação, julgamento e sensibilidade, características que nenhuma máquina, por mais avançada que seja, consegue simular de forma autêntica. Criar continua sendo um ato profundamente humano, porque exige contexto, intenção e vulnerabilidade.
O Future of Jobs Report 2025, do Fórum Econômico Mundial, reforça esse movimento. Entre as habilidades mais valorizadas dos próximos anos estão o
“aprendizado ativo” e a “curiosidade tecnológica”. Em outras palavras, o profissional criativo do futuro será aquele que não teme a IA, mas sabe dialogar com ela. É nesse ponto de virada que surge o Criativo 2.0.
Mas então o papel do júnior acabou?
Durante muito tempo, o júnior foi o braço operacional das ideias. Era quem recortava fundos, exportava versões, trocava palavras ou corrigia sombras. O aprendizado vinha da repetição: observar o sênior e executar.
Hoje, a inteligência artificial faz em segundos o que antes tomava horas. Para muitos profissionais em início de carreira, isso parece uma ameaça real. Se a tecnologia já executa as tarefas básicas, o que sobra para quem está começando?
Bom, sobra o que a máquina ainda não entende: a intenção.
O júnior que se destaca não é o que apenas domina as ferramentas, mas o que pensa com elas. Entende que a IA não é inimiga, mas uma extensão do processo criativo. Percebe que o valor não está mais em “como fazer”, e sim em “por que fazer”.
O diferencial está na capacidade de direcionar com propósito, transformando resultados genéricos em algo com relevância estética, estratégica e emocional.
A nova geração de criativos precisa adotar uma postura mais ativa. É preciso criar desafios próprios, testar, errar, documentar o processo e aprender com a comunidade.
A McKinsey chama essa habilidade de learning agility, ou agilidade de aprendizado. É a capacidade de aprender rápido o que ainda não existe, de se adaptar à mudança e transformar curiosidade em prática.
É isso que encurta a distância entre o júnior e o sênior em um mercado em que a velocidade de evolução técnica já não é o grande diferencial. Hoje, qualquer pessoa pode produzir imagens, roteiros e vídeos. Mas esse poder só se transforma em diferencial quando é usado com visão crítica e repertório cultural.
O papel do júnior não acabou, ele apenas mudou de lugar. De executor do que já existe, tornou-se explorador do que ainda não foi imaginado.
E a dupla de criação? Ainda faz sentido?
Durante décadas, a dupla de criação foi o coração da publicidade. Redator e diretor de arte dividiam a responsabilidade de dar forma e sentido às ideias. Um traduzia pensamento em palavras, o outro transformava palavras em visual. Essa dinâmica funcionava porque as linguagens eram complementares e bem delimitadas.
Mas a chegada da inteligência artificial embaralhou os papéis e a velha fronteira entre pensar e executar se dissolveu. A nova pergunta é como o criador passa a colaborar com o que a tecnologia oferece.
Em muitas agências e estúdios, começa a surgir um novo formato: o da trinca criativa: humano, humano e IA. Onde as habilidades se combinam e as experiências se somam. Vemos redatores gerando imagens, diretores de arte criando roteiros e a inteligência artificial propondo caminhos, variações e combinações que seriam impossíveis há poucos anos.
A IA entra no brainstorming, nas referências, nos experimentos e até na pré-produção. É uma terceira voz na sala, não humana, mas uma tecnologia amplificadora.
O papel do criativo, então, muda. Permitir que a máquina gere não é o fim da autoria, mas o começo da direção. A função da dupla deixa de ser apenas conceber ideias e passa também a dirigir o diálogo com a IA, filtrando o que é ruído e transformando o acaso em intenção.
Na Ogilvy London, equipes já usam o ChatGPT para escrever versões de roteiros que depois são retrabalhadas com o olhar humano. Na GUT São Paulo, o Midjourney ajuda a construir concept boards em minutos, acelerando o tempo de resposta e liberando espaço para o refinamento conceitual. Mais uma vez, a inteligência artificial não substitui o trabalho da dupla, mas muda a natureza da parceria.
Antes, o processo era linear: ideia, execução e entrega. Agora, ele é circular. A IA devolve possibilidades instantâneas, o humano refina, testa de novo, repensa. Com isso, o ciclo criativo se tornou mais rápido, mais vivo e mais experimental.
A dupla continua fazendo sentido, mas com um novo tipo de colega: aquele que trabalha em velocidade de milissegundos, mas precisa ser guiado por quem entende contexto, timing e emoção.
A IA é uma força multiplicadora que amplifica tanto a boa ideia quanto a mediana. E é justamente por isso que o diferencial do criativo contemporâneo está em aprender a dirigir não só pessoas, mas também sistemas. A IA não acabou com o trabalho criativo, ela o redefiniu. À medida em que a tecnologia automatiza tarefas, cresce o valor de quem sabe pensar, interpretar e dar direção, ou seja, do ser humano.