Opinião

A força dos pequenos rituais

Tratamos a autenticidade como essência, mas análises mais recentes mostram que ela está muito menos ligada ao que uma marca diz e muito mais ao que repete com coerência

Chiara Martini

Diretora sênior de estratégia criativa na The Coca-Cola Company 24 de novembro de 2025 - 14h00

Chegamos a um ponto curioso da nossa cultura contemporânea: produzimos mais do que nunca, consumimos mais do que conseguimos absorver e, ainda assim, nada parece durar tempo suficiente para criar um significado real. Nesse paradoxo entre excesso de estímulo e falta de uma sensação de estabilidade, podemos ver um certo renascimento dos pequenos rituais, aquilo que é simples, mais humano e previsível.

A sociologia estuda há décadas a função dos rituais na vida cotidiana: práticas repetidas que oferecem estrutura, identidade e pertencimento. Quanto mais acelerado o mundo se torna, mais buscamos esses micropontos de aterrissagem, esses hábitos que parecem organizar nossas experiências e oferecer continuidade a um fluxo que não para. Eles funcionam como pequenas âncoras mentais e emocionais.

O interessante é observar como esse mesmo mecanismo opera de forma muito eficiente no mundo das marcas. Durante muito tempo, tratamos a autenticidade como essência, uma espécie de “verdade interior” de uma marca. Mas análises e reflexões mais recentes que tenho visto mostram que a autenticidade percebida está muito menos ligada ao que uma marca diz e muito mais ao que ela repete com coerência ao longo do tempo.

Autenticidade, nesse contexto, é continuidade. É consistência. É relação sustentada, não apenas declaração. Como o filósofo Byung-Chul Han me ensinou por meio de seus textos, a resistência à turbulência mora na preservação do que é duradouro.

É justamente essa noção de permanência que vem provocando a discussão sobre o que define atenção nos dias de hoje. No mundo hiperacelerado, atenção não é view, ela é vínculo. Views são temporárias, enquanto vínculos são cumulativos. Views desaparecem, vínculos retornam. A verdadeira disputa não é por exposição, mas por lembrança, e lembrança se constrói por meio de práticas que se repetem.

É nesse território que surgem os micro-rituais de marca: gestos pequenos, repetidos e que criam reconhecimento, conforto e pertencimento. Eles aparecem de formas diversas. No ritual de consumo ligado a uma ocasião específica: a bebida que acompanha a sexta à noite, o snack que virou parte do domingo, o produto esperado no pós-treino.

Na estética que o público reconhece sem esforço: a cor que aciona memória instantânea, o design que virou assinatura, a composição visual que o olhar identifica antes mesmo que o cérebro a processe. Na identidade sonora: a vinheta curtíssima que antecede qualquer experiência e já prepara emocionalmente o público. No hábito digital criado pela cadência: o conteúdo que é publicado sempre no mesmo horário e que faz a pessoa abrir o app automaticamente, quase como um reflexo.

Os creators fazem isso muito bem com seus bordões e vinhetas de abertura dos vídeos, a frequência e o horário em que publicam os conteúdos, a consistência nos formatos dos quadros, todos esses recursos que fazem com que as pessoas voltem e criem um senso de conexão e comunidade.

São rituais pequenos se olharmos individualmente, mas gigantescos no efeito acumulado. Pequenos pontos de continuidade em um mundo que muda rápido demais. Detalhes discretos que não dominam o dia, mas marcam presença com precisão. E aqui está a chave estratégica: rituais não reduzem escala, eles criam escala.

Quase todo grande movimento cultural nasceu de algo mínimo: um refrão que virou hino, um gesto que virou símbolo, um bordão que virou linguagem, um horário que virou encontro. Escala não vem do tamanho do ato em si, mas do número de pessoas que passam a adquiri-lo, a repeti-lo. Um ritual é pequeno para o indivíduo, mas gigantesco para o sistema. É assim que padrões simples se tornam cultura: pela sua capacidade de contágio.

Práticas simples, reconhecíveis e reproduzíveis têm maior poder de difusão social. Os micro-rituais funcionam exatamente assim. Quando repetidos coletivamente, constroem uma escala que não nasce do impacto, mas da constância, uma presença que se acumula até virar hábito.

Essa perspectiva nos permite entender por que marcas que criam micro-rituais se tornam parte da vida e não apenas parte da mídia. Elas se inserem no cotidiano pela cadência, pela repetição simbólica, construindo intimidade em escala. E tudo isso ganha ainda mais relevância diante da crise de originalidade que atravessamos.

Com tecnologias generativas capazes de criar infinitas variações de tudo, que muitas vezes acabam virando variações do mesmo, o conteúdo pode perder seu poder de diferenciação. Originalidade, nesse novo contexto, não é invenção, é persistência. É o ponto de vista que não oscila. É o gesto que retorna. É a assinatura que resiste ao algoritmo.

Talvez essa seja a maior revelação e reflexão para pensarmos marcas agora: num mundo rápido demais, o que realmente marca são as pequenas coisas que insistem em voltar, que conseguem persistir em meio ao caos. Os microgestos que constroem intimidade. As presenças que ganham significado pela cadência. As marcas que entenderem isso perceberão que o jogo mudou: não é mais sobre capturar atenção, é sobre merecê-la.

Porque, no fim, atenção se conquista, sim, no impacto, mas o vínculo real só vem com a repetição que cria conexão emocional. E é o vínculo que sustenta tudo, que perdura.