Opinião

Um jornal perdido aos 150 anos

Ao pretensamente invocar a isenção jornalística, é o talento do repórter que O Estado de S. Paulo quer sepultar

Eduardo Tessler

Sócio-diretor da Mídia Mundo 28 de novembro de 2025 - 6h00

A grande maioria dos idosos sofre de demência, em maior ou menor grau. É o cérebro que envelhece, muitas vezes mais rápido que o resto do corpo. Há casos de uma doença um pouco mais agressiva, o Alzheimer. São quadros que se observam frequentemente em humanos com, por exemplo, mais de 80 anos.

Agora são os jornais tradicionais que se deixam envelhecer – e perdem a razão. Jogam fora os anos de relevância, o outrora bom jornalismo, e pecam pela falta de lógica nas ideias que defendem.

O mais recente exemplo vem de um editorial de O Estado de S. Paulo, publicado em 12 de novembro, sob o título “O Perigo do Jornalismo Militante”. O texto até tenta defender uma ideia de neutralidade dos meios de comunicação, relatando o erro cometido pela inglesa British Broadcasting Corporation(BBC), que custou a cabeça do diretor-geral.

A BBC é símbolo do jornalismo público de qualidade no Reino Unido, cobrando uma taxa obrigatória de todos os residentes – como se fosse uma assinatura compulsória. Só que a BBC alterou uma fala do presidente dos EUA Donald Trump. Fez um corte para parecer que Trump havia dito algo que efetivamente não disse. Aí errou. Descobriu-se a manipulação e a bomba explodiu “no andar de cima”.

Até aí, tudo bem. Há 20 anos, por exemplo, descobriu-se que um jornalista do The New York Times inventava entrevistas. Jayson Blair foi demitido e o NYTimes é a bíblia do bom jornalismo, com mais de 12 milhões de assinantes. Ou seja, a marca, a história, a relevância superou um erro humano.

Mas o Estadão quis ir mais longe, Já perto do final do texto afirma: “A tarefa da imprensa independente não é salvar o mundo, é apenas descrevê-lo com honestidade”. Antes diz que …“o jornalismo profissional é desafiado a manter seu papel de guardião da verdade factual”… e ainda “A verdade não pertence a um partido nem a uma causa, pertence ao público”.

Corta para 2018, no segundo turno das eleições presidenciais entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad: No dia 08 de outubro daquele ano o mesmo O Estado de S. Paulo sai com um dos mais famosos editoriais da história do jornalismo contemporâneo. Sob o título “Uma Escolha Muito Difícil” o Estadão fugiu de sua responsabilidade de ajudar o leitor a entender o que estava em jogo naquele momento.

Preferiu fingir que havia uma escolha entre dois candidatos semelhantes a identificar o duelo entre um democrata e um simpatizante da ditadura – a mesma ditadura que trocou carinhos com a empresa jornalística estabelecida no bairro do Limão, em São Paulo. Até hoje o Estadão paga o preço de sua alegada “independência”, que na verdade era um aceno ao eventual vencedor e sua política retrógrada (precisa lembrar da Terra Plana? Das vacinas para Covid? Do corte de verbas para ciência e universidades?).

O jornal O Estado de S. Paulo agora comete um dos maiores erros que o jornalismo tradicional acreditava ser verdade: invocar a isenção do jornalista. A academia ensinava que o repórter era um ser neutro em uma situação diferente da habitual. E que isso era a notícia. A vida ensinou que o repórter, um ser humano que anda na cidade, frequenta bares e restaurantes, paga impostos, vive a lógica da sociedade, sempre terá um lado para se identificar. E o jornalismo do século XXI aceita essa realidade. É ela quem permite que os veículos de comunicação sejam únicos, diferentes. É o talento do bom repórter, que agora o editorial do Estadão quer sepultar.

É claro que isso não tem nada a ver com a mentira – esse elemento que não pode ter vez no jornalismo. A maior parte dos usuários de redes sociais que se identificam como “influenciadores” mentem – e não têm nenhum compromisso com a verdade. Querem provocar “clicks”, faturar algum. Só que esses não são jornalistas.

Jornalistas são humanos que checam informações, contrastam com versões, escutam vários lados, mas evidentemente tomam uma posição. É a maneira como uma reportagem é escrita. Algo vem na frente, no lead (primeiro parágrafo). Quem decide é o repórter e suas convicções. Isso deixa de ser “verdade factual”, como diz o Estadão? Claro que não.

O tradicional veículo paulistano esquece que um mesmo acidente de automóvel será contado de dez maneiras diferentes por dez testemunhas que estavam no local. Nenhum estará mentindo, mas cada um terá seu ponto de vista. O Estadão não entende. Talvez ainda seja consequência da drástica queda de vendas do impresso nos últimos anos, que deixou o diário paulista com não mais que 50 mil exemplares dia, segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC), o mais confiável termômetro de circulação do Brasil.

Ah, sim: para esconder os números, o Estadão abandonou o IVC em 2024 e contratou a auditoria privada PwC. Como por milagre, a circulação disparou mais de 130%. Deve ter sido obra de algum “jornalismo militante”, agora “denunciado” pela empresa em editorial.