Quando a estrada não dobra de tamanho
Se tem algo que a gente deveria ter aprendido com a pandemia é que a gente controla bem pouca coisa
Se tem algo que a gente deveria ter aprendido com a pandemia é que a gente controla bem pouca coisa
Somos afeitos aos clichês. Um dia, você é um jovem incomodado com os familiares que lhe encontram e dizem “Nossa, como você está grande! Dia desses, estava no meu colo”. No outro, você está a repetir essa frase para as crianças que começam a surgir à volta, com o passar dos anos.
Um dia, você é uma pequena criatura a ouvir de um adulto: aproveite porque tudo passa rápido. Você faz cara de simpático porque desde muito cedo foi ensinado a mentir socialmente para agradar aos outros, mas bufa internamente. No outro, você reflete sentado em uma cadeira de praia, daquelas que tombam a qualquer movimento: estou aproveitando a vida? Você se distrai, a cadeira fecha em si mesma e suas costas avisam que haverá uma demora para sair daquela situação constrangedora. Se até aqui você aprendeu a rir da vida, vai sorrir enquanto bate a areia do corpo e tenta remontar a cadeira. O guarda-sol é arrastado pelo vento nesse momento. Você corre atrás dele na velocidade dos acontecimentos da vida. Porque, como dizem os mais velhos: é tudo num piscar de olhos.
Desde pequeno, tenho uma relação de curiosidade com o tempo. No jornal O Globo, havia uma coluna que repetia os fatos marcantes que aconteceram 50 anos antes naquele mesmo dia. Eu me lembro de quando a minha sogra viu um momento que ela se lembrava de ter vivido com sete anos. Ela cantou a música que marcava aquele evento e tudo. Recordo de fazer contas quando completava um aniversário e pensava sobre o que os meus pais estavam fazendo quando tinham a mesma idade. Sou de uma geração que imaginava como estaria quando o tal ano 2000 chegasse, como se algo mágico pudesse ocorrer naquela data. Nada ocorreu, além de novas promessas e beijos emocionados ao som e à luz de fogos de artifícios. Por mais que a gente tente prever as coisas ou desenhar o futuro, a vida se impõe trazendo fatos nunca imaginados.
Estou perto de completar cinquenta anos de idade. Cruzar os trinta foi como atravessar uma camada de neblina da espessura de um carpaccio. Zero problema. Não me vi muito reflexivo sobre a passagem dos quarenta anos, tampouco. Lembro apenas da decisão de não pintar o cabelo e usar bloqueador solar. Aos quarenta, talvez eu desejasse que a estrada à frente pudesse ter o mesmo tamanho de tempo pelos anos a seguir. O que me deixava sereno. Cinquenta anos é quando você sabe que dificilmente terá o dobro do tempo. Pela primeira vez, estou refletindo profundamente sobre o que vem pela frente.
Nesse período, um texto do Julián Fuks chegou às minhas mãos e trouxe junto mais uma faixa de reflexão que ressoa em mim. Diz, em uma parte:
“Algo em nossa época, algo que se relaciona à exposição constante de cada uma das nossas conquistas, por ínfima e irrelevante que seja, parece provocar em nós uma sanha maior pelo reconhecimento dos outros. O desejo de sucesso se fez mais intenso e mais universal, o desejo de um sucesso que já não pode ser parcial ou menor, não pode ser a mera identificação de uma qualidade entre tantas. Deseja-se tudo, ser bom, ser grande, ser vastamente conhecido pelos demais, e ganhar muito dinheiro a partir disso. O que resulta da imensidade desta ambição é uma forte tendência à insatisfação, e uma ansiedade bem difundida.”
Em um artigo que também falava sobre a passagem do tempo, a Cris Naumovs lançou as questões: “Você sabe que tretas quer comprar? Que pedras quer carregar?” Para completar, o Raphael Despirite, com a sua escrita muito solta e sem freio de mão puxado, tem tocado constantemente no estoicismo. Através dele, cheguei à frase de Sêneca que diz “Esperar é o maior obstáculo para viver.”
Esperamos os likes, as palminhas, os seguidores subirem. Esperamos ser aprovados pelas nossas postagens, pelo que dizemos, pelo que não dizemos. Esperamos reconhecimento quase sempre em uma escala difícil de ser preenchida. Moldamos a nossa imagem para que toda essa espera valha a pena e nos frustramos porque esse amor desmedido por si mesmo tem espelhos demais ao redor. Há quem lide bem com isso, e outros fingem lidar.
Nessa reflexão sobre os anos por vir, imagino que essas pequenas aprovações serão ainda mais intensificadas. Coloquei a conta de uma rede social para hibernar, desliguei uma outra, posto coisas banais em mais outra. Tento não ser mais refém, ainda com insucesso, de armadilhas que eu mesmo fui criando para saciar essas esperas diárias. Parei, também, de romantizar as relações de trabalho. Alguns dias são duros, outros são felizes. Ter equilíbrio não é estar parado em uma posição única. É um eterno balançar, de leve, para lá e para cá, na corda bamba das relações.
Outro exercício é não criar grandes conjecturas sobre o futuro. E fazer as pazes com arrependimentos do passado. Se tem algo que a gente deveria ter aprendido com a pandemia é que a gente controla bem pouca coisa. Como disse certa vez o filósofo Mike Tyson: todo mundo tem uma estratégia até tomar um soco na cara. A descoberta de que não é possível dominar tudo pode ser libertadora.
Todas as outras coisas que desenhei na cabeça envolvem uma busca de quietude e de baixar as expectativas. Julgar menos, pegar onda sempre que possível, dar bom dia mesmo que não te devolvam a gentileza, aproveitar a minha família, estar colado nas pessoas que comprariam as minhas brigas e vice-versa, ler mais e evitar consumir áudios e vídeos em velocidade acelerada, porque a vida já é demasiado corrida.
De mais a mais, jogo um pedido (ou dois) no ar: que eu envelheça aprendendo e o meu cérebro não engasgue. E, se não for pedir muito, não quero ficar com pelos para fora das narinas e das orelhas. Deus me poupe de ser um velho com orelhas peludas e antenas de baratinha para fora do nariz. Por desencargo, vou estocar aparador de pelo de nariz portátil desde já.
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