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Opinião

Quando menos é mais

Alguns pontos da regra de três do escritor Cal Newport, em Produtividade Lenta: A Arte Perdida da Realizacão sem Burnout, soam quase um insulto à nossa indústria em 2024, mas ele conquistou seguidores ao encorajar o foco profundo


3 de junho de 2024 - 6h00

Em uma das raras entrevistas de Clarice Linspector (1920-1977) ao Jornal do Brasil (à época o jornal de maior prestígio do País), em meados dos anos 1970, pouco antes de morrer, uma das maiores escritoras brasileiras da segunda metade do século XX disse que “o processo de escrever é feito de erros – a maioria essenciais – de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada e de repente aquilo que se pensou que era ‘nada’ era o próprio assustador contato com a tessitura de viver (…)”.

Em 1951, foi publicado o livro que rompeu com as tradições da literatura mundial. On the Road, do escritor Jack Kerouac, considerado um marco, destaca-se pela representação da contracultura e do movimento Beat e foi escrito de forma alucinada em três semanas. On the Road, no entanto, foi recusado por várias editoras, e esperou alguns anos até ser, finalmente, publicado, em 1957. O processo diferenciado de criação fazia parte do plano subversivo do escritor: libertar a escrita das amarras acadêmicas e torná-la fluida, como um solo improvisado de jazz.

Este não parece um exemplo óbvio de um homem que não tem pressa. No entanto, Kerouac é citado no livro que li recentemente Slow Productivity: The Lost Art of Accomplishment Without Burnout (Produtividade Lenta: A Arte Perdida da Realizacão sem Burnout, em traducão livre) – recém-lançado nos Estados Unidos e ainda sem tradução no Brasil, pelo guru da produtividade Cal Newport. A obra destaca a realidade por trás dos mitos. Kerouac pode ter escrito seu primeiro rascunho num surto de criatividade, mas depois passou mais seis anos nele até ser lançado.

O título Slow Productivity parece por si só um oxímoro, mas para quem conhece as demais obras de Newport como Trabalho Focado: Como ter Sucesso em um Mundo Distraído (Alta Books, 2018) e Minimalismo Digital: Para uma Vida Profunda em um Mundo Superficial (Alta Books, 2019) essa reformulação e polimento são fundamentais para o argumento de Newport de que os “trabalhadores do conhecimento” – um grupo que vai de profissionais da indústria criativa a advogados – precisam de algum tipo de abrandamento. A sua filosofia baseia-se em três princípios: fazer menos coisas; trabalhar em um ritmo natural; e obsessão pela qualidade.

Confesso que os dois primeiros pontos desta regra de três para qualquer profissional da nossa indústria em 2024 soa quase como um insulto e aqueles devaneios e sonhos distantes do tipo terapia detox no spa Lapinha. Mas Newport, professor associado de ciência da computação na Universidade de Georgetown, em Washington DC, conquistou seguidores ao encorajar o foco profundo, longe do barulho das mídias sociais e da ocupação performática.

Seu novo livro surge num momento do que chama de “freneticismo insustentável” e propõe um novo padrão: realização sem esgotamento (ou sem burnout). Há defensores de cidades lentas, da mídia e até mesmo da corrida. Newport cita o movimento slow food na Itália na década de 1980, uma reação ao fast food, liderado pelo ativista e jornalista Carlo Petrini.

A produtividade lenta é uma resposta às dores que Newport ouviu dos trabalhadores no início da pandemia de Covid-19 e depois, que estavam “perdendo mais ou menos o dia inteiro em reuniões virtuais consecutivas, com quase todos os momentos de tempo de inatividade preenchido com conversas hiperativas do Slack”. Quem nunca?

A pandemia despertou o interesse em novos padrões de trabalho. Apesar das decisões unilaterias de regresso ao escritório, o trabalho híbrido parece ter vindo para ficar. Foram realizados testes da semana de quatro dias em todo o mundo, onde os trabalhadores recebem o pagamento integral em troca de 100% da produção em 80% do tempo.

No entanto, segundo Newport estas ideias parecem “insuficientes”. Algumas de suas sugestões, ele admite, são um resumo de seus maiores sucessos anteriores. Ele exorta as pessoas a serem realistas quanto aos seus prazos e a reduzirem a lista de tarefas em 25% a 50%. Sugere programar temporadas lentas, ausência de reuniões às segundas-feiras (logo no dia mundial das reuniões!), agendamento de descanso e reserva de tempo para si mesmo.

Seu chamado para tirar uma tarde de folga para ir ao cinema durante a semana foi talvez uma das partes do livro que mais me tocou, pois sempre tive/tenho esta fantasia, até que ele escreveu sobre todos os horários em que tendemos a trabalhar nos finais de semana ou à noite. Isso sublinhou a sua opinião de que por vezes o problema não vem dos chefes ou patrões, mas de nós próprios.

Newport reconhece – sem realmente abordar o assunto – a dificuldade de conciliar cargas de trabalho com responsabilidades de cuidados. Afinal, o tempo é uma questão feminista. E cita o livro lançado em 2016 pela jornalista sueca Katrine Marçal Who Cooked Adam’s Smith Dinner? (Quem preparou o jantar de Adam Smith?, em traducão livre), best-seller com tradução em dez línguas, mas ainda não em português, que defende que o economista considerado o pai do liberalismo econômico era capaz de dedicar tempo ao seu trabalho porque não tinha de pensar nas tarefas domésticas.

É difícil saber até que ponto levar a sério o apelo à lentidão de Newport, um acadêmico de 41 anos com vários livros publicados e um trabalho regular de contribuição à prestigiada revista The New Yorker. Sem dúvida, ele argumentaria que a priorização e o foco permitiram sua rápida trajetória.

A parte mais interessante de Slow Productivity é a sua discussão sobre a pseudoprodutividade, que floresceu, escreve ele, porque não temos esperança em medir o trabalho do conhecimento – ao contrário da indústria de transformação, onde é fácil contar o número de equipamentos e widgets produzidos num determinado momento. Em vez de métricas concretas, diz Newport, as pessoas usam “a atividade visível como um indicador bruto da produtividade real. Se você puder me ver em meu escritório – ou…  veja minhas respostas de e-mail e mensagens de bate-papo chegando regularmente – então, pelo menos, você saberá que estou fazendo alguma coisa.” Essa ocupação performativa, argumenta Newport, nos impede de realizar o trabalho mais significativo.

Uma vida profissional lenta pode ser tentadora, mas definitivamente, não é para preguiçosos. Exige mudanças de padrão de trabalho, método, planejamento e dedicação. E voltando ao início deste texto, parece nos levar cada vez mais distante da “vegetativa atenção” de Clarice Linspector.

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