Sobre um lugar esperado
Para haver um consenso do que é o novo normal, não seria preciso haver, anteriormente, um consenso do que é normal? Aliás, o que é o normal?
Para haver um consenso do que é o novo normal, não seria preciso haver, anteriormente, um consenso do que é normal? Aliás, o que é o normal?
As lembranças são confusas, flashes de falas que pareciam fazer sentido, mas eram desconexas. Uma alegria nas cores ao redor, uma sensação de profundo relaxamento. Tinham acabado de quebrar o meu nariz inteiro em uma cirurgia de desvio de septo. Aproveitei o ensejo para colocar o danado reto pela primeira vez na vida. Quatro horas de procedimento. Eu não sentia uma dor sequer. A maca me levava pelos corredores, e eu tinha certeza de que estava a bordo de uma corrida da 99. Certeza. Agradeci ao enfermeiro por ter aceitado uma corrida curta que ninguém queria pegar e confirmei que daria 5 estrelas para ele na avaliação. Ele sorriu para a minha esposa. Ela entendeu o que ele dizia com aquele sorriso: efeito da anestesia. Como se não bastasse, uma enfermeira perguntou o que eu gostaria de lanchar. Respondi que aceitaria de bom grado um Lumberjack do Bullguer. Ela riu. A Penélope, agora, sabia que eu estava muito louco. Eu, não. Dormi, acordei algumas horas depois querendo saber se tudo era fantasia ou realidade. Como aquele menino que saiu chapado de anestésico do consultório do dentista e perguntava para o pai: “Is this real life?” Naquele momento de sobriedade, fiz o que estava com mais receio: respirei fundo. Não houve tampão que impedisse. O ar entrou pela minha narina direita em um fluxo inédito. E eu me emocionei com a simplicidade desse ato. Uma lágrima escorreu pela face inchada. Respirar pelo nariz, uma coisa básica, é normal para a grande maioria das pessoas. Para mim, era o novo normal.
Não gosto muito da expressão “novo normal”, porém, não tenho a menor intenção de lutar contra. Ela já está consagrada pela proporção que tomou em alta velocidade e pela facilidade com a qual se espalhou. Fosse em um passado recente, estaria contrariado, mas, agora, reflito. Respirar plenamente, um ato automático, não era normal para mim. E eu nem sabia. A otorrinolaringologista (adoro esta palavra) fez a pergunta: “Como você conseguiu viver assim até hoje?” E ela mesma respondeu: “Você não sabia o que era respirar pelo nariz. Então, aquilo era o seu normal.”
Quantas pessoas no mundo pensam que respiram normalmente sem saber que não? Ou sabem que não é normal, mas não têm acesso a uma septoplastia? Um detalhe: mesmo com o nariz reto, o cirurgião plástico alertou sobre a memória corporal. Como se o corpo tentasse colocar as coisas nos antigos lugares. A noção de um nariz reto não era normal para o meu corpo.
Em um artigo recente, o Igor Puga escreveu um trecho que reforça a minha intenção de não bater de frente: “O ponto é que essa postura egoísta elimina a premissa essencial de qualquer discussão: a construção de conhecimento, e não o palco de uma disputa.” Escrevo para debater, fazer perguntas em voz alta. Por que precisamos de uma expressão acelerada que demarque os limites entre normal e novo normal? Para haver um consenso do que é o novo normal, não seria preciso haver, anteriormente, um consenso do que é normal? Aliás, o que é o normal?
A etimologia da palavra normal vem do latim normalis, que significa “de acordo com a regra”. No Michaelis, há algumas definições para esse adjetivo: conforme a norma; regular; que é comum e que está presente na maioria dos casos; habitual, normal; tudo que é permitido e aceito socialmente; diz se de pessoa que não tem defeitos ou problemas físicos ou mentais.
Ao ler as definições, a palavra mostra-se ainda mais ambígua e perigosa: “Diz-se da pessoa que não tem defeitos.” Normal é não ter defeitos? O que seriam defeitos nesse contexto? Imagino que a expressão novo normal tente flertar com a definição daquilo que seria o habitual, o que está presente na maioria dos casos. É uma hipótese. Nesse caso, quando dizem que o home office será o novo normal, parece haver uma lacuna. Cinquenta e sete milhões de residências no Brasil não têm nem acesso à rede de esgoto. E aí surge mais uma questão: para quem estamos falando que esse é o novo normal?
Busco nas palavras do biólogo Atila Iamarino outra reflexão: “Afinal, somos muito mais advogados do que cientistas. Agir como cientistas seria esperar os fatos primeiro para decidir como agir depois, com base em evidências. Superimportante para a cultura humana, mas péssimo para sobreviver. Quem esperou evidências para concluir o que se movia atrás de um arbusto não deixou descendentes. Pensamos como advogados. Partimos de uma tese que nos beneficie e buscamos evidências que a reforcem.”
Neste momento, estamos todos em modo de sobrevivência e não parece sábio cutucar ainda mais o arbusto. Vejo que alguns defendem a tese da morte do conhecimento do outro para que o seu próprio surja como alternativa única. “A criatividade morreu”, disse um profeta outro dia. “A comunicação era baseada apenas no instinto”, exclamou outro. Eu proponho a soma. Conhecimento não se subtrai, ele é adição. Conhecimento é troca, muito mais do que um lugar de teorias que nos trazem conforto. Em um mercado tão acelerado como o da comunicação, temos que estar ainda mais alertas para o aprofundamento das questões ao redor de teses que somem com a mesma facilidade que surgem, mesmo que um dia alguém tenha dito que elas eram para sempre.
Em vez do novo normal, tenho pensado em um lugar esperado. Porque é um lugar futuro, de desejo, e não uma certeza cravada. Afinal, quem diria que a gente teria que explicar o conceito de fascismo em pleno 2020, não é mesmo? Nesse lugar esperado, eu desejo mais debates construtivos e que a maioria das pessoas busque sair melhor no pós-pandemia. Desejo que as plataformas se responsabilizem de alguma maneira por um controle maior da disseminação de fake news, pois os efeitos são terríveis. Sonho que a gente volte a valorizar a cultura, a ciência e a educação. Alguns desejos sobre um lugar esperado.
A minha filha trouxe uma frase do Charles Addams, autor dos quadrinhos que inspiraram A Família Addams: “Normal é uma ilusão. O que é normal para a aranha é caos para a mosca.” Normal é um ponto de vista, também. O que me leva a mais uma questão: não seria melhor compreender que a riqueza das relações está na percepção daquilo que faz cada um ser individualmente único? Não tenho a resposta. Tenho as questões que venho fazendo a mim mesmo. E que divido aqui como quem troca, não como quem anula. Porque, no mundo de hoje, lembro-me muito do menino anestesiado: essa é a vida real?
*Crédito da foto no topo: iStock
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