7 de junho de 2022 - 14h00
Crédito: Marcos Medeiros
A janela repleta de adesivos contava uma história do surfe no Brasil sem que a gente soubesse. A maioria das marcas não existe mais. Vou citar algumas e peço para que você faça um exercício de visualização desses nomes junto comigo. Muitas dessas marcas carregavam um arco-íris ou um sol. Era uma época de muitas cores e todas essas cores ficavam espalhadas por janelas de quartos, capas de cadernos, janelas laterais dos carros. K&K, Cristal Graffiti, Pier, Company, Pakalolo, ElectricLight, Op, Fico, Tico, Sundek, Redley, Alternativa, Rato de Praia, Hang Ten, Lightning Bolt, Hang Loose. Na TV, a série Armação Ilimitada rompia com os limites da forma de contar história e nos fazia sonhar com a vida de surfista. Os acordes de Girl Afraid, do The Smiths, anunciavam o programa Realce do imortal Ricardo Bocão, personagem fundamental da história do surfe no Brasil, e do seu companheiro lendário, Antônio Ricardo. Foi lá que eu vi a imagem heroica do surfista Michael Ho dropando Pipeline com o braço quebrado. O pier de Ipanema não existia mais, mas a aura permanecia nas areias. O delegado Elói, que se orgulhava de ter prendido Gilberto Gil pelo simples porte de um baseado, marcava preconceito com o seu bordão: nem todo maconheiro é surfista, mas todo surfista é maconheiro. Pais repetiam esse bordão e maldiziam as tatuagens e as pranchas. Enquanto isso, Caetano cantava sobre o dragão tatuado no braço, o calção e o corpo abertos no espaço. O Havaí seja aqui era o sonho de surfistas e até de não surfistas. E continua sendo até os dias de hoje. Há algo de mágico no universo do surfe, uma corrente silenciosa a nos puxar para o fundo do oceano da imaginação. Entre o imaginário e a vida de um surfista de competição há, porém, um redemoinho brutal. Boa parte dos surfistas profissionais vive entre o sol (com uma rotina que nos parece idílica) e o sentimento de estarem sós. Falo disso mais tarde.
Surfistas amadores costumam fazer grandes deslocamentos de carro apenas para surfar. Ou emendar uma sucessão de transportes urbanos pelo prazer de chegar ao mar. Uma viagem internacional de surfe pode consistir em pegar um avião até a Cidade do México, esperar no aeroporto por algumas horas e embarcar para Huatulco. De Huatulco são mais duas horas e meia de carro até Salina Cruz. E de Salina para os picos, a viagem leva, em média, uns 40 minutos sacolejando. Comparado com um roteiro para a Indonésia ou Austrália, é coisa simples, até. Contando assim, essa volta toda para pegar onda não faz sentido algum. Para quem surfa, entretanto, basta uma primeira onda boa para justificar essa peregrinação e esquecer a dor na lombar, sem o uso de Tandrilax. “Sal faz bem” é o jeito que costumo pontuar o apagar das luzes de cada dia incrível no mar. Ou furto aquela frase que aparece em algumas postagens: a cura para tudo é água salgada: suor, lágrimas e o mar. Os adesivos na janela da minha casa eram uma forma de trazer o mar para perto.
Um levantamento de 2019 feito pelo Instituto Brasileiro de Surfe (Ibrasurfe) constatou que o esporte movimenta R$ 7 bilhões ao ano em pranchas, roupas e acessórios, sendo que 70% do público consumidor é composto por não praticantes. São admiradores que vestem as marcas como quem veste uma praia paradisíaca. Nesse sentido, a roupa de surfe cumpre a mesma função do adesivo na capa do caderno. Ela faz com que você se sinta parte daquele universo, ela ajuda no sonho de parecer estar lá. A indústria do surfe no Brasil tem tudo para crescer ainda mais nos próximos anos. São mais de 50 milhões de pessoas acima de 18 anos que dizem se identificar com o estilo de vida e, pelo menos, três milhões de homens e mulheres surfando pelo Brasil. O crowd só deve engrossar.
Aqui, volto para o surfe profissional e a sua imagem quase perfeita. Um surfista ou uma surfista de competição lidam com percalços incalculáveis. Digo incalculáveis por dois motivos. Porque, inconscientemente, foi criada a sensação de que aquilo ali é o trabalho dos sonhos, que eles não têm problemas, que é só surfar e pegar sol. E porque o custo para correr um circuito e ter alguma chance de entrar na Liga Mundial é proibitivo. Para disputar todas as etapas do QS, o Qualifying Series, eu chutaria algo na faixa de R$ 200 mil reais. Se der tudo muito certo, ainda vêm as etapas CS, a Challenger Series. Medina, Ítalo Ferreira, Tati Weston, Filipe Toledo e mais alguns poucos nomes ganham os olhares das marcas. Mas a realidade é que há uma infinidade de atletas por todo Brasil com pouquíssimo apoio. Mesmo na Liga Mundial, há uma disparidade de investimento. O Jadson André, surfista potiguar, que o diga. A Brazilian Storm, que tanto assombra os gringos, poderia ser muito mais poderosa. Surfistas profissionais sonham com o adesivo no bico de prancha.
Conheci recentemente o surfista Victor Costa. Nascido e criado na Vila de Ponta Negra, Natal. Surfe sólido e bonito, atleta focado, carreira repleta de títulos amadores, uma história de vida daquelas que você abraça no primeiro capítulo. Entre tantas coisas que me chamaram atenção nele, a visão sobre o mundo do surfe de competição e as suas barreiras no Brasil. Com 22 anos, Victor deveria estar com todo suporte possível para correr as etapas do circuito de classificação. Não está. Nem ele, nem tantos amigos e amigas que ele cita elogiando. Victor desenvolveu uma visão sobre o surfe que começa a desenhar uma nova carreira para ele. Ele é obcecado por cada detalhe da movimentação de um surfista. E sabe ajudar a corrigir esses movimentos. Vai ser um técnico brilhante. Mas muito antes disso, é um surfista que dá gosto de ver na água.
Há entre o adesivo na janela e o adesivo no bico de prancha, um imenso espaço a ser preenchido pelas marcas. É preciso fazer com que o consumidor sonhe com o mar, mas é preciso dar suporte para que a nova geração de surfe possa chegar ainda mais forte no circuito. Meninos e meninas repletos de talento não faltam. E eles não deveriam estar sós.