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Opinião

Te cuida

Voltei para a mensagem no celular. O "te cuida" ganhou outros sentidos depois da leitura


27 de fevereiro de 2023 - 6h00

Crédito: Bangkok, Thailand/ Shutterstock

A mensagem bateu no celular, com um link. Na sequência, a frase: te cuida. Ela está escrevendo bem. Voltei para olhar o link com mais atenção e percebi que a foto mostrava a CEO da Grey Brasil, Luciana Rodrigues, com um olhar confiante. Ao seu lado, uma luva de boxe vermelha fazendo as vezes de um porta-lenço de papel. E ao redor da mesa, lenços espalhados. O título do artigo deixava claro que eu também precisaria daqueles lenços. Li o texto num respiro só. Ou seria num soluço sentido? Sim, ela está escrevendo bem, mas o que é escrever bem? É acertar na fluidez? É ser capaz de conduzir aquela pessoa do outro lado para um mundo que habita em você? Pecar nas pontuações é pecado mortal contra a escrita? E a repetição das palavras pecar e pecado, assim, tão próximas? Escrever bem é seguir aquelas regras de redação do Enem, em busca de uma nota alta? É conseguir abraçar o leitor carinhosamente, sem deixar de dar uns apertos na costela dele em um ou mais trechos? Não sei ao certo. O que penso é que a pessoa que escreve espera intimamente que aquilo faça sentido para além dela. Imagino que ela deseje, sim, que tudo esteja muito bem escrito, mas a partir do momento em que saiu dela, parte da missão está cumprida. Escrever é o exercício de tirar de dentro de nós. E isso independe de publicar ou não. Às vezes, basta um arquivo que você pode olhar de vez em quando e pensar “que alívio, tirei de mim!”

Esse texto da Luciana saiu dela, do lugar mais íntimo dela para nós. É lindo por isso também. Voltei para a mensagem no celular. O “te cuida” ganhou outros sentidos depois da leitura.

Tenho citado tanto o Luiz Antonio Simas nos meus textos que prevejo o momento em que vai bater um fiscal com uma cobrança de direitos lá em casa. Enquanto não vem, pego uma postagem do Simas que caiu como um “te cuida”. “Só coroa percebi que precisamos de tempo para opinar sobre determinados assuntos. Maturar, bater cabeça ao tempo lento, dormir, acordar, para formular uma opinião que não concluímos nada. A urgência opinativa é uma tirania vaidosa.”. O conceito da urgência opinativa é de um brilho invejável. Porque a formulação sugere algum tipo de mal a ser combatido. Imagino um diálogo:

– Ele não parece bem. O que está acontecendo?

– Tá sofrendo de urgência opinativa. Tem sido acometido a todo instante. Percebe a boca seca, os pés nervosos

batendo no chão, o jeito que interrompe os outros? Então.
Parar, pensar, refletir, dizer “Não sei, não entendo desse assunto a ponto de opinar, preciso de um tempo, acho que tá cedo para afirmar qualquer coisa, pergunte a ela que sabe mais sobre isso”. É fundamental cuidar melhor daquilo que precisamos ou não dizer. Estamos aflitos em opinar quando muitas vezes a nossa opinião não risca nem a superfície do assunto. É um opinar automático, um cumprir regras de um sistema invisível que sequer espera pelo que temos a dizer. Mas algo em nós diz que espera. O professor Simas tem palavras “te cuida” em muitas das suas escritas.

O texto da Lu não é opinativo, é sobre a urgência do que precisa ser falado. E aqui a chamo Lu não por uma mania paulistana de abreviar todo nome para a primeira sílaba. Eu a chamo assim porque nos conhecemos há mais de 20 anos, quando estávamos começando na F/Nazca para atender Telemar. Faz tanto tempo que o briefing era sobre a quantidade de orelhões e os quilômetros de fibra óptica instalados. Fizemos o mesmo briefing por quase um ano, mas isso é outra história. Voltando ao cerne do texto. A Lu faz um relato profundamente íntimo, doloroso e – ao mesmo tempo – bonito sobre o câncer que ela venceu. Já no título, ela nos alerta: “Eu curei meu câncer. Ou foi ele que me curou?”. Se você não leu esse artigo, recomendo que leia o quanto antes, este é o link: https://bit.ly/3KmGU59.

Sabe aquela regra de que não devemos repetir a mesma palavra no texto? A palavra chorei aparece em 30 ocasiões. Tudo isso num fluxo que você vai junto com a autora, percorrendo todos os picos e quedas dessa jornada. Na vulnerabilidade da Lu, surge com as palavras algo que arrisco nomear como libertação. Tirando uma piada que eu fiz uma vez e ela cuspiu água na mesa toda, nunca tinha visto a Lu perder o controle. De nada mesmo (da agenda, dos fatos, dos dias). Sempre que vou viajar para um lugar que ela já conhece, recebo um catálogo que parece mais ordenado que um armário de roupa organizado por escala de cores. E o que ela revela no texto? “Em mais de duas décadas no mundo corporativo, nunca faltei a um compromisso e, talvez exatamente por isso, enquanto eu me dizia ‘isso é inaceitável, como você deixou essa doença chegar, Luciana?!’, o quartinho de bagunça escondido na minha cabeça gritava ‘das consequências de ter se controlado tanto, você não vai escapar’”.

Sem perceber, o quartinho da bagunça abafa aqueles pedidos de “te cuida”. Como disse a minha esposa numa troca de mensagens com a Lu: “Para mim, é necessário uma força gigantesca para se permitir ser, em toda amplitude e complexidade que nos cabe.” O texto da Lu é, também, sobre essa permissão.

Escrevi para a Lu assim que percebi a comoção que surgia ao redor das suas palavras: “Um texto que circula para além de nós traz a certeza de o que a gente fala para dentro pode ecoar para fora. O eco chegou a mim com duas palavras soltas ao vento: te cuida”.

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