Transformação digital: entre a miragem e a miopia
Pensar a transformação digital olhando apenas as tecnologias que vão sustentar a presença da sua organização na tela do celular ou computador é arriscado
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Antes de se lançar em uma iniciativa de transformação digital, as empresas precisam analisar como as mudanças nos contextos social e tecnológico vão afetar sua proposta de valor nos próximos anos e como vão fazer para financiar as inevitáveis turbulências no fluxo de caixa até a consolidação do novo modelo. Alguns acontecimentos recentes no setor de e-commerce são ilustrativos nesse aspecto. A venda da Netshoes por uma fração do que valia quando abriu seu capital, o anúncio do encerramento das operações online do Walmart e alguns boatos sobre o destino de outras operações de comércio eletrônico mostram as dificuldades da diversificação de mercados e da integração com as operações tradicionais.
Obviamente, não se trata de um desafio impossível, como demonstra a operação até aqui bem-sucedida do Magazine Luiza. Mas o foco excessivo em um nicho de consumidores ou na solução tecnológica costuma gerar um “ponto cego” para a criação de um fluxo de caixa sustentável. No caso da Netshoes, uma análise dos últimos relatórios trimestrais deixa claro que as dificuldades em lidar com a diversificação de mercados (geográficos e de produtos) afetava seriamente a rentabilidade da operação.
Não é algo inédito: gestores que se dão bem em um segmento ou região têm uma perigosa tendência de subestimar a complexidade de estender suas operações para outros setores ou locais. Parte disso se deve à crença que o mindset que trouxe o sucesso até agora será o mesmo que vai levar ao sucesso em outras circunstâncias. Muitos processos de expansão ou transformação não são uma questão de gestão do conhecimento, ou seja, adaptar uma metodologia que “deu certo”, mas sim de “gestão da ignorância”: é necessário colocar tanto esforço no mapeamento das diferenças e suas consequências sobre a lucratividade quanto no mapeamento das similaridades. Isso é particularmente difícil em uma situação de mudança tecnológica acelerada ou transformações regulatórias como as que começamos a ver na questão da privacidade e posse dos dados pessoais, que podem alterar radicalmente os custos de alguns modelos de negócios.
Muitos gestores de organizações tradicionais acreditam que é possível “injetar” um modo de fazer negócios em algum ponto de sua cadeia produtiva, mas tendem a subestimar duas variáveis: a eficiência operacional muitas vezes está intimamente relacionada com uma cultura muito específica, e uma alteração em um processo às vezes altera radicalmente outro setor da empresa (mudanças na logística frequentemente impactam a estrutura de RH, por exemplo). Pense no caso dos modelos de “marketplace” ou plataformas: embora apresentem uma estrutura de custos muito superior aos processos tradicionais, frequentemente implicam maior atrito com os integrantes da cadeia (por exemplo, o Uber).
Nem todas as empresas estão dispostas ou possuem uma cultura capaz de se adaptar à gestão de conflitos frequentes, ou são capazes de operar nas suas pontas (centros de distribuição, entrega ao consumidor final, elaboração de contratos etc.) na mesma velocidade com que seus novos “fornecedores”. A velocidade com que as empresas digitais lançam e abandonam produtos e serviços é fascinante e explica boa parte do seu sucesso. Mas como fazer isso em uma cultura que não dá autonomia para seus funcionários ou na hora da promoção privilegia o comportamento “estável”? Essa é uma situação típica das operações “omnichannel” e o alinhamento sempre é mais fácil no papel do que na vida real.
Esses são temas frequentemente ignorados quando falamos em transformação digital. Normalmente, o foco é sempre no tamanho da oportunidade em termos dos novos consumidores ou formatos de entrega de produtos e serviços. Mas sem um entendimento claro de qual a estrutura financeira que vai suportar a nova proposta de valor, essas iniciativas são abandonadas diante das primeiras dificuldades de caixa no negócio tradicional (foi o que aconteceu com as operações digitais do Carrefour, há alguns anos, e fique de olho nas decisões do GPA diante das repetidas notícias sobre os problemas da sua controladora na França).
A transformação digital vai requerer também uma mudança nos modelos de negócio e essa transição, na maior parte das vezes, afeta o fluxo de caixa e a rentabilidade de uma organização. Por isso é importante envolver o financeiro de uma empresa no processo desde o início. Não somente para viabilizar os recursos necessários até a estabilidade do novo modelo, mas também para ajudar as outras áreas a construírem indicadores que demonstrem a evolução nesta direção. Essa é uma parceria que vejo frequentemente ignorada na área de marketing e comunicação.
Quando examino os casos de sucesso e fracasso de implantação de iniciativas digitais, sempre me lembro do Miopia em Marketing, um texto clássico da nossa área que talvez alguns leitores mais novos não conheçam (afinal, o texto é contemporâneo do Kotler, rs). Ficamos frequentemente tão “maravilhados” com o que a tecnologia pode fazer por nossos produtos ou serviços que esquecemos de olhar o contexto no qual ela é consumida. E esse contexto é fundamentalmente determinado por coisas que acontecem fora das nossas empresas. Um exemplo do mercado de bens de consumo é ilustrativo: João Carlos Brega, CEO da Whirlpool da América Latina, me contou que a produtividade das fábricas brasileiras de multinacionais em diversos setores (inclusive no de eletrodomésticos) é igual ou superior às localizadas nos Estados Unidos ou na China.
O problema começa da produção “para fora”: o custo total do transporte de um contêiner entre São Paulo e Santos é quase o mesmo do envio entre China e Santos. Além disso, por conta dos trâmites alfandegários, o caminhão precisa chegar no porto cerca de duas semanas antes do embarque previsto, o que gera uma imobilização de capital que compromete qualquer ganho de produtividade na fábrica.
Pensar a transformação digital olhando apenas as tecnologias que vão sustentar a presença da sua organização na tela do celular ou computador é arriscado. Sem entender como será possível financiar a proposta de valor para seu consumidor do futuro, tudo o que você tem é uma miragem, que vai se desfazer “exponencialmente” no primeiro soluço do caixa da empresa.
*Crédito da imagem no topo: Liuzishan/iStock
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