Opinião

Canibais de nós mesmos

Uma boa parte de nós sabe como funciona uma máquina de produzir cases fantasmas

André Kassu

Sócio e chief creative officer da CP+B Brasil 14 de julho de 2025 - 14h00

“Mais uma dose
É claro que eu estou a fim.
A noite nunca tem fim.
Por que a gente é assim?
Canibais de nós mesmos,
Antes que a terra nos coma.
Cem gramas, sem dramas.
Por que a gente é assim?”

Até Cannes deste ano, nunca tinha escutado os versos da canção do Barão Vermelho de outra forma que não fosse sobre um amor intenso e visceral. Uma relação amorosa cantada com um riff marcante e que, certamente, está entre os melhores blues já gravados com letra em português. Cazuza sabia demais das coisas.

Agora, cá estou eu, com a questão “Por que a gente é assim?” flutuando na cabeça — parte dela como um amor intenso, tal e qual foi previsto na letra. Desses que a gente quer por inteiro, antes que a terra nos coma. Mas a outra parte virou uma indagação: o que nos leva a canibalizar a nós mesmos?

Não é um dedo apontado, não é um tiro certeiro, muito menos uma bala perdida. Até porque o meu passado tem telhado de vidro.

Uma boa parte de nós sabe como funciona uma máquina de produzir cases fantasmas. Sabe, inclusive, como essa máquina produz um verniz de quase verdade e como ela foi se sofisticando com o passar do tempo.

Certa vez, o ex-jogador de futebol Vampeta cunhou uma frase que ficou lendária: “Eles fingem que me pagam, e eu finjo que jogo”. Na adaptação para o acordo velado em premiações, o regimento de Vampeta pode ser lido como: você finge que isso aconteceu de verdade, eu finjo que acredito, e assim seguimos.

Como bem definiu o (Luiz) Pacete em uma publicação: “Que todos os episódios que (infelizmente e felizmente) foram expostos sirvam de um alerta e de esperança, para que atitudes questionáveis de algumas agências e pessoas não ocorram novamente”. Gosto desse trecho porque ele não generaliza.

De acordo com o Sebrae, o Brasil tem mais de 36 mil empresas registradas como agência de publicidade, sendo que 85% delas são micro e pequenas empresas. Então, é preciso ter cuidado com afirmações como “toda agência”, “todo o mercado”. A única generalização que eu creio ser possível é que, em Cannes de 2025, perdemos todos nós. Até os que ganharam legitimamente.

Por isso, neste momento duro, acredito que refletir pode ser um ato plural e necessário. Uma pergunta importante para balizar nossas motivações para estar nesta indústria: “Se não existissem as mais de 500 premiações ao redor do mundo, continuaríamos a trabalhar com propaganda?”. Acho que essa é uma questão para ser repetida em silêncio, continuamente. E não, não é apenas uma pergunta para os times de criação.

A segunda questão que julgo ser crucial é: “Eu acredito nesse propósito ou ele é um atalho para o tão sonhado prêmio?”. E aqui relembro da comoção com a tartaruga que tinha um canudo de plástico preso na narina. Uma imagem terrível. Meses depois, entrei em uma lanchonete e percebi que, na mesa, havia um canudo de papel. “Vamos salvar o mundo!”, parecia dizer o canudo. Só que um mero detalhe derrubava todo o discurso: ele estava embalado em uma fina camada de plástico. Tem muito propósito por aí que mais parece canudo de papel embalado em plástico.

O que nos leva a duas outras questões: “Eu realmente deveria estar envolvido nessa causa?” e “No meu conjunto de ações, há algo que sustente a minha posição?”. Acho, no mínimo, curioso que uma agência pensada com um propósito tão sólido, como é o caso da Gana, não esteja na busca incessante pelas ideias de causa.

Minha percepção se concretizou numa conversa com o Felipe Silva: o propósito, para a Gana, é tão fundamental que eles não embarcam em ações pontuais, dessas que surgem e desaparecem.

Um outro grande amigo, o Marco Monteiro, coleciona fatos da vida real com potencial de serem premiados em grandes festivais, mas feitos por pessoas que desconhecem completamente a existência de festivais de propaganda (sim, elas são a maioria).

Um desses fatos diz respeito ao gari Luciano Ferreira, morador de Sorocaba. Ele criou um projeto literário a partir dos livros encontrados em lixeiras da cidade. Hoje, ele tem mais de 600 exemplares e acredita na sua missão de disseminar a leitura. Entre o case que foi montado para dizer que ajudou alguém (e mal ajudou) e o Luciano, quem parece ter mais causa e propósito?

Para fechar este parágrafo, recomendo assistir ao episódio “A oncologista pediatra”, da sensacional série The Studio. Há muitos paralelos ali.

Digo mais uma vez: perdemos todos nós.

“Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma./ Cem gramas, sem dramas./ Por que a gente é assim?”

Volto à canção do Barão Vermelho. Agora, sob o olhar do amor ali contido. E aqui roubo do Francisco Bosco, que fala que o amor contém os altos e baixos da caminhada de uma relação.

Já a paixão é um ato inconsciente, feito de rompantes. Para quem ainda ama trabalhar com propaganda, vai ser preciso investir para recuperar a imagem dessa relação. E investir de verdade