Criatividade em tempos de automação
O que ainda é humano em comunicação e marketing?
Vivemos a era da eficiência. Na comunicação, nunca tivemos tantos recursos para produzir em escala e tão rapidamente. Em segundos, plataformas de IA completam textos, criam roteiros, geram imagens, sugerem pautas, legendas, títulos. Prompts bem construídos se tornaram a nova linguagem do fazer. Mas mesmo os melhores prompts não entregam o que nos torna humanos: olhar, intenção, sensibilidade, emoção.
Fazer conteúdo não é apenas organizar palavras. É compreender o momento, o contexto, a sutileza do que se diz e do que não cabe dizer. Na pressa por resultados e na busca por fórmulas que funcionam, corremos o risco de produzir muito e comunicar pouco. Porque o brilho de uma mensagem está menos no volume e mais no vínculo; algo que ainda é e sempre será humano.
Redescobrindo o valor do intervalo
Costumo dizer que a criatividade mora no intervalo, no exato espaço entre o dado e a decisão, no tempo em que a mente vagueia sem obrigação de entregar algo; o que é cada vez mais raro atualmente. Ainda acredito verdadeiramente em nossa capacidade de conectar os opostos e fazer reluzir grandes ideias, uma habilidade que não nasce da lógica linear dos dados e algoritmos, mas da nossa experiência em toda sua complexidade.
É fato que a hiperprodutividade da comunicação atual, embora poderosa, tem achatado esses espaços de criação verdadeira. Estamos sempre entregando, mas nem sempre sentindo. Sempre postando, mas nem sempre provocando. E o risco é perder o que nos torna singulares: a capacidade de dizer algo que não poderia ser dito por mais ninguém. Por isso, é tão importante continuarmos defendendo algo que o colega Eugênio Bucci define como “estética do acontecimento” – a potência de criar, não a partir da repetição do previsível, mas do impacto do inesperado, daquilo que ainda não tem nome.
Coragem criativa: como sustentar o novo
Muito se fala sobre inovação, mas muito pouco sobre o incômodo que ela causa. E com a criatividade é a mesma coisa, pois ela exige que tenhamos coragem, não só para criar, mas para sustentar o que é diferente, antes que o mundo esteja pronto para ele.
Na prática, acredito que a coragem criativa comece com escuta. Com a abertura ao que ainda não está pronto, empacotado, ao que não foi validado, ao que ainda está em construção. Significa acolher ideias sem moldá-las de imediato às exigências de performance. É perguntar “e se?”, mesmo que a resposta não venha com garantias.
E obviamente, coragem criativa também se faz nos bastidores: na curadoria dos conteúdos, na defesa de narrativas menos óbvias, no respeito pelo tempo da ideia, que nem sempre se alinha ao tempo do algoritmo.
Criar é, sobretudo, um ato cultural
Nossas referências, histórias, regionalismos, ancestralidades e modos de ver o mundo são parte vital da comunicação que impacta. A tecnologia pode nos dar meios, mas não cria sentido, pois isso é algo que vem da cultura dos povos, da linguagem viva, do território simbólico onde estamos inseridos.
Uma ideia que faz sentido no Japão talvez não funcione no Brasil. E nosso país, em sua imensidão territorial, pode muito bem testemunhar o surgimento de um insight poderoso no Sul, mas que pode soar estranho no Norte. Entender a cultura, no sentido antropológico e social, é o que diferencia comunicação de massa da comunicação com alma. E é nesse ponto que a criatividade se torna uma ponte entre o que é dito e o que é vivido, entre a lógica do marketing e o pulsar da sociedade.
O futuro é híbrido, mas precisa de espaço humano
Sinceramente, não se trata de recusar a tecnologia; aliás, em meu papel de liderança, estou sempre acompanhando e estimulando a adesão às tendências e soluções que fazem o dia a dia da equipe mais produtivo, estratégico e inteligente. Mas precisamos garantir que as inovações não atropelem o espaço onde mora o diferente. É sempre aquela máxima: automatizar o que é repetitivo é progresso, mas automatizar o pensamento é risco. Mesmo porque o sentimento só pode habitar um corpo humano.
Por mais que a tecnologia evolua, ainda há territórios que só a humanidade percorre: a construção simbólica, a empatia, o improviso, a dúvida, a coragem de propor algo que não se sustenta em dados, mas em intuição. A IA pode gerar conteúdo e simular emoção, mas só nós podemos gerar conexão e sentir de verdade.
Se queremos um marketing e uma comunicação que emocionem, inspirem e toquem, precisamos proteger o que ainda é humano no processo. E isso começa com tempo, escuta e coragem. Afinal, criatividade é o que nos faz humanos. E, justamente por isso, talvez seja nossa maior responsabilidade preservá-la.