Opinião

Marcas à prova de realidade

As marcas ganharam uma nova dimensão na percepção da população, muito além da sua função racional; se isso for usado efetivamente há um enorme ponto de inflexão ao ecossistema da comunicação como um todo

Regina Augusto

Diretora Executiva do Cenp e Curadora de Conteúdo do Women to Watch 7 de julho de 2025 - 14h00

A ressaca pós Cannes Lions teima em não passar, especialmente aqui no Brasil. E como o tema central da crise do Lionswashing é a confiança, vale a pena beber na fonte de quem mais entende dessa matéria, Richard Edelman, CEO da gigante global de relações públicas fundada por seu pai, que leva o nome da família. O Trust Barometer, criado pela Edelman, é um estudo global anual que avalia os níveis de confiança nas instituições, como governo, mídia, empresas e ONGs e visa entender como as pessoas percebem e confiam nessas instituições, além de identificar tendências e padrões de comportamento em relação à confiança.

Richard Edelman esteve no Cannes Lions este ano para apresentar uma atualização especial das conclusões do Trust Barometer de 2025. O cenário atual de policrises tem levado a um fenômeno que surpreendeu o próprio Edelman: “É uma crise enorme. As pessoas estão sofrendo com os impactos negativos – Covid, geopolítica, inflação, perda de empregos devido à IA. É por isso que a confiança nas marcas se tornou mais importante do que nunca.”

Os dados são claros: a confiança se tornou um novo eixo de competição. “Pela primeira vez, a confiança é igual a preço e qualidade nas decisões de compra de uma marca”, explica o consultor. “Isso é enorme. Particularmente entre a geração Z, perguntas como ‘De onde veio?’ e ‘Os funcionários foram bem tratados?’ agora são fundamentais para as decisões de compra”, afirma.

De fato, os dados da Edelman mostram que 80% das pessoas confiam nas marcas que usam, em comparação com apenas 54% no governo e 55% na mídia. “Isso é novo”, diz ele. “As marcas agora são mais confiáveis do que qualquer instituição. Elas estão preenchendo o vazio deixado por sistemas públicos falidos”, enfatiza.

Talvez a maior mudança conceitual no relatório deste ano seja o que Edelman chama de ascensão da “marca ativa”. E o propósito evoluiu: “Costumava ser sobre ‘nós somos o mundo’. Agora é sobre mim – meu trabalho, meu futuro financeiro, minha família. As marcas devem ser pessoais, não preconceituosas.”

As principais expectativas do “eu” em relação às marcas incluem “me fazer sentir bem” (68%), “proporcionar esperança para o futuro” (68%) e “me dar informações de qualidade” (68%). Em contraste, fatores do “nós” como “me ajudar a fazer o bem” (61%) e “ajudar a comunidade” (59%) ainda importam, mas são secundários. “As pessoas querem que as marcas reflitam seu universo pessoal – não apenas uma grande narrativa global”, acrescenta Edelman.

Aqui vale abrir um enorme parêntesis. Já há alguns anos, o índice de confiança nas marcas no recorte Brasil do Trust Barometer é mais alto do que a média mundial. A surpresa de Richard Edelman, na atualização do estudo apresentada em Cannes é de que agora – tendo o Brasil como trendsetter (!) – as pessoas nos mais diversos mercados estão focando nas marcas sua última reserva de confiança, já que as demais instituições as decepcionaram demasiadamente.

Essa leitura talvez aconteça porque como seres desejantes (e o desejo é a força propulsora do consumo) tendemos a depositar nas marcas não apenas representações simbólicas, como afirmação de identidade e de pertencimento, mas também a expectativa de que possam ajudar a lidarmos melhor com o caos do mundo.

Não por acaso, boa parte dos cases brasileiros que não passaram no teste antidoping da verdade de Cannes em 2025 apresentaram soluções para problemas reais. A equação que não fechou é que problemas complexos não se resolvem com videocases impecáveis manipulados por ferramentas de IA, que, por apresentarem “inconsistências graves relacionadas à veracidade ou legitimidade” (para usar a expressão empregada nos comunicados oficiais divulgados pelos envolvidos e que basicamente querem dizer fraudulentos e mentirosos), acabaram sendo o pivô de uma bem-vinda e necessária revisão de processos de ponta a ponta – do briefing ao julgamento das peças pelos júris.

Há vários aprendizados aqui. O principal deles é que as marcas acabaram ganhando uma nova dimensão na percepção da população, que vai muito além da sua função racional. Se essa dimensão for usada efetivamente – e não apenas para construir videocases que não passam na prova da realidade – há um enorme ponto de inflexão para marcas e para suas guardiãs, as agências de publicidade, e para o ecossistema como um todo.

Por mais criativos que sejamos como indústria publicitária, a realidade se impõe. A tecnologia somente potencializa aquilo que nós ensinamos a ela – nossos valores e compromissos éticos. Muito se fala sobre marcas à prova de futuro. Mas, prefiro dizer marcas à prova de realidade.

Na apresentação da Edelman, foram destacados também dados que mostram que os consumidores esperam que as marcas ajam quando há uma conexão clara com um problema, como um legado de envolvimento passado, um benefício direto para clientes ou funcionários, ou relevância para a missão da marca.

Em entrevista ao site inglês The Drum, durante o Festival de Cannes, Richard Edelman foi cirúrgico ao falar sobre como as agências e a indústria publicitária podem navegar neste cenário: “Embora as holdings possam estar dobrando a aposta na compra de mídia e na performance, o cerne da comunicação continua sendo o storytelling e as ideias que são conquistadas, que se estabelecem na cultura.” E finalizou: “As marcas têm o investimento. Elas têm o alcance. Elas podem fazer isso. Mas é melhor que sejam sinceras.”