Opinião

Em Cannes, os fantasmas se adaptam

Festival repensa qualidade de avaliação dos concorrentes, mas sobrevive da cultura do exagero

Alexandre Zaghi Lemos

Editor-chefe do Meio & Mensagem 14 de julho de 2025 - 6h00

Na tentativa de estancar a maior crise de reputação da sua história, o Cannes Lions divulgou, na semana passada, documento sobre as medidas que pretende implementar para a edição de 2026. A revisão nas regras foi motivada por irregularidades em diversos cases vencedores em 2025.

São três os pontos principais: a promessa de implementar um sistema de verificação de fatos, com checagens manuais e análises por inteligência artificial (IA); exigência de aprovação aos videocases por diretores da agência e do anunciante; e sanções mais severas por má conduta, incluindo o banimento do evento por até três anos para empresas que apresentarem trabalhos falsos.

Entretanto, apesar das denúncias de inconsistência em informações propagadas por videocases de projetos ganhadores de Leões em 2025, que motivaram reportagens e postagens em redes sociais em vários países, o Cannes Lions cassou troféus de apenas uma premiada: “Consumo Eficiente de Energia”, da DM9 para Consul, da Whirlpool, vencedora do Grand Prix de Creative Data e mais um Leão de Bronze.

Além do projeto anunciado não ter sido colocado em prática, o videocase usou IA para falsificar imagens e vozes de uma reportagem da CNN Brasil e de uma apresentação do TED Talks. Reconhecendo “inconsistências graves relacionadas à veracidade ou legitimidade”, a DM9 devolveu mais 10 Leões concedidos a outras duas campanhas. Foi a única agência a devolver troféus.

Os chief creative officers da DM9, Icaro Doria, e da LePub, Felipe Cury, foram demitidos. Isso comprova que o Brasil é o epicentro da crise e justifica movimentos como o da Abap, que reunirá agências nas próximas semanas para discutir um código de conduta voltado à participação em premiações.

Se implementar as medidas prometidas, o Cannes Lions poderá coibir a inclusão de informações falsas em videocases ou material de apoio enviado aos seus júris, o que seria salutar para toda a indústria, dado que o festival é a sua maior e mais importante vitrine global.

Por outro lado, o maior rigor do evento não deverá acabar com as peças criadas especificamente para tentar a sorte em festivais publicitários. Esses projetos, tradicionalmente chamados de fantasmas, ajudam a sustentar o evento, são incentivados por muitos anunciantes e movimentam agências do mundo todo. O festival já premiou diversos projetos embrionários, alguns deles que até ganharam escala após a boa repercussão do prêmio conquistado.

Como Cannes não é um local para desfile da publicidade trivial cotidiana, os projetos especiais, desenvolvidos fora da linha de produção motivada pelos briefings mercadológicos das marcas, continuarão recebendo parte significativa dos Leões. Em sua maioria, são ações localizadas, de curta duração, mas que podem ser construídas respeitando as regras dos festivais e sem recorrer a informações falsas.

Os criativos brasileiros não são os únicos, mas estão entre os melhores especialistas do mundo na modalidade de campanhas sem briefings específicos — em alguns casos, há até o pedido genérico dos anunciantes por sacadas criativas capazes de conquistar prêmios. Um dos aspectos que faz deles referência na conquista de Leões é o traquejo com prazos curtos, baixos orçamentos e ações de execução rápida.

Para jogar “dentro das quatro linhas” e escapar dos ghostbusters, os fantasmas se adaptam às mudanças.

Na época em que só havia mídia tradicional em Cannes, a questão central era a veiculação paga da campanha, o que podia ser resolvido com uma inserção na madrugada ou em qualquer publicação de baixa circulação. Era fácil esquentar o fantasma. A mídia digital acabou com esse obstáculo, mas trouxe outros mais complexos, como a instituição do videocase como base principal para a decisão dos júris.

Cannes já promove alguns julgamentos bem mais rígidos, como os de Titanium, Innovation e Glass, nos quais há sessões abertas ao público para apresentações ao vivo dos cases. Essas são as áreas mais econômicas, com menos de 10 Leões em cada. Nada comparado aos 60 troféus distribuídos por cada um dos júris de Brand Experience & Activation, Direct e Media.

A quantidade de competições — atualmente são 30 — e a repetição de premiados em muitas delas abre muitos espaços para a premiação desses cases pontuais. Um dos dramas que Cannes terá de resolver é que a qualidade de avaliação cai na medida em que aumenta o número de concorrentes — e a sobrevivência do evento está baseada na cultura do exagero.