Opinião

A revolução cujo manual ninguém leu

É a incapacidade de ler o próprio manual que define quem sobrevive às transformações

Guido Sarti

Head de dados e insights da Galeria 11 de julho de 2025 - 14h00

Enquanto o mercado publicitário se debate entre o otimismo tecnológico e o pessimismo apocalíptico sobre a inteligência artificial, tenho observado algo curioso: empresas que acreditam que ter acesso a ferramentas de IA resolve seus desafios de comunicação. Ter uma Ferrari na garagem não faz de ninguém um piloto de Fórmula 1.

O que vejo acontecer com frequência é simples: organizações investem em tecnologia sem investir em conhecimento. Compram acesso às melhores ferramentas, mas não sabem fazer as perguntas certas, interpretar os dados de performance ou ajustar estratégias quando os primeiros resultados chegam.

A transformação que estamos vivendo me lembra a Kodak. A empresa inventou a câmera digital em 1975, mas passou décadas sem saber o que fazer com a própria criação. Tinham a tecnologia, tinham os engenheiros, mas faltou capacidade de mudar o modelo mental. Outras empresas usaram a mesma tecnologia e construíram impérios.

A diferença entre revolução e evolução

É exatamente essa incapacidade de ler o próprio manual que define quem sobrevive às transformações. Faz mais de uma década que trabalho com dados e inteligência artificial aplicada à comunicação. Vi promessas grandiosas virarem implementações medíocres e ferramentas simples gerarem resultados extraordinários quando usadas por quem entende o que está fazendo.

O que estamos vivendo agora não é apenas “mais uma mudança”. Nem o apocalipse que alguns pintam. É uma transformação sutil, mas poderosa: pela primeira vez na história da publicidade temos ferramentas capazes de amplificar exponencialmente nossa capacidade criativa e analítica, desde que saibamos como usá-las.

E aqui está o ponto central: a questão não é se a IA vai transformar a publicidade. Ela já está transformando. A questão é se vamos ser protagonistas ou espectadores dessa transformação.

O que realmente está mudando

Na prática, isso significa mudanças concretas no dia a dia. Quando analiso os dados de performance das campanhas que rodamos, vejo padrões que seriam impossíveis de identificar manualmente. A IA nos permite testar centenas de variações criativas simultaneamente, otimizar budgets em tempo real e personalizar mensagens em uma escala que era impensável há poucos anos. Mas nada disso acontece automaticamente.

Cada insight gerado pela IA precisa ser interpretado por alguém que entende de comportamento do consumidor. Cada otimização precisa ser configurada por quem conhece os objetivos de negócio do cliente. Cada personalização precisa ser validada por quem conhece a marca.

Sem essa troca entre máquina e gente, corremos o risco de criar algo tecnicamente perfeito, mas opaco e vazio. Conteúdo que funciona nos algoritmos, mas não ressoa com pessoas reais. É o símbolo da internet morta: eficiente, otimizada, mas sem alma.

A IA não está substituindo publicitários. Está criando uma nova categoria de profissional: o publicitário que sabe usar IA. E a diferença entre estes e os que não sabem está se tornando abissal.

As oportunidades que estão surgindo

Enquanto alguns se preocupam com o que vão perder, prefiro focar no que podemos ganhar. E as oportunidades são enormes.

Criatividade amplificada: Podemos testar ideias em escala antes de investir em produção. Recentemente, usamos IA para gerar mais de mil variações criativas em apenas dois dias. Algo que, anos atrás, seria inviável.

Personalização real: Não é só colocar o nome do cliente no e-mail. É criar mensagens genuinamente relevantes para cada pessoa, baseadas em comportamentos reais.

Eficiência operacional: Tarefas que consumiam dias agora podem ser feitas em horas. Relatórios que demandavam equipes inteiras agora são gerados automaticamente. Isso libera tempo e recursos para o que realmente importa: estratégia, criatividade e relacionamento com clientes.

Novos modelos de negócio: Agências que dominam IA podem oferecer serviços que antes eram impossíveis: consultoria em tempo real, otimização contínua, insights preditivos.

Estratégias para navegar a transformação

Baseado no que tenho visto funcionar (e no que tenho visto falhar), algumas estratégias se destacam:

Invista em conhecimento, não apenas em ferramentas: Comprar acesso ao ChatGPT não faz de ninguém especialista em IA. É como comprar uma câmera profissional e achar que virou fotógrafo. O diferencial está em saber fazer as perguntas certas, interpretar os resultados e aplicar os insights de forma estratégica.

Comece pequeno, mas comece agora: Não espere ter a estratégia perfeita. Escolha um projeto piloto, teste, aprenda, ajuste. Cada semana de atraso é menos vantagem competitiva.

Forme parcerias estratégicas: Nenhuma agência precisa ser especialista em tudo. Mas toda agência precisa ter acesso a especialistas. Busque parcerias e invista em treinamento.

Por que esta vez é diferente

Toda revolução tecnológica gera ceticismo. Mas há algo fundamentalmente diferente na revolução da IA: pela primeira vez, temos ferramentas que podem replicar e amplificar capacidades cognitivas humanas, não apenas físicas.

Profissões baseadas em conhecimento, como a publicidade, estão sendo transformadas de forma profunda. Quem souber navegar essa transformação terá acesso a capacidades antes inimagináveis.

A diferença entre quem fechou e quem virou estúdio digital não foi a tecnologia. Foi a mentalidade. Foi a capacidade de enxergar oportunidade onde outros viam apenas ameaça.

O futuro que podemos construir

Imagino um futuro onde agências de publicidade são verdadeiros centros de inteligência de mercado. Onde cada campanha gera aprendizados que alimentam a próxima. Onde a criatividade é potencializada por dados e a estratégia é refinada em tempo real.

Mas esse futuro só será construído por agências que escolheram o real em vez do fantasma. Que pararam de vender promessas vazias de “transformação digital” e começaram a entregar transformação real de negócios.

Essas agências entenderam que o manual da revolução da IA não está escrito em lugar nenhum. Ele precisa ser construído, testado, refinado a cada projeto. E isso só acontece quando você combina tecnologia com conhecimento profundo do negócio do cliente, do comportamento do consumidor e da essência da marca.

A maior oportunidade que a publicidade já teve. Mas só pra quem estiver disposto a construir o manual enquanto faz.