Cassações e devoluções: a história dos fantasmas em Cannes
Videocases anabolizados ou peças criadas somente para ganhar prêmios já obrigaram a retirada de muitos Leões
Criar e produzir peças com foco nos festivais é rotina em agências de publicidade do mundo todo. Alguns anunciantes não só aceitam e assinam as propostas criativas que recebem, como até incentivam a prática. Antigamente chamadas de fantasmas, essas peças mais vistas nas salas de júris do que no cotidiano dos mercados onde nascem costumam expressar sacadas criativas que os publicitários não conseguem encaixar nas campanhas rotineiras dos clientes que atendem. Se, na verdade, não contribuem com os objetivos mercadológicos das marcas, elas estimulam a criatividade na publicidade, aumentam a conexão com clientes e prospects e elevam a aspiração de toda a indústria pela busca do excepcional e da ousadia, argumentam seus defensores.
O olhar para os festivais de criatividade como passarela de alta-costura e os investimentos em projetos específicos para emplacar prêmios são práticas endêmicas do mercado brasileiro. Mas ocorrem também em outros países, pois, nesses eventos, há pouco espaço para a publicidade trivial do dia a dia, aquela que pode fazer bem a sua função de incrementar vendas, de construir marcas ou dialogar satisfatoriamente com o público local, mas não encanta júris formados por criativos de várias partes do mundo. Em uma passada de olhos nos cases vitoriosos é fácil identificar cases focados em salvar o mundo, sem preocupação mercadológica, assinados por ONGs ou, até mesmo, por marcas que têm ambição de nutrir uma imagem inovadora — mesmo que, para isso, tenham que aceitar campanhas sem muita conexão com os seus propósitos reais.

Azedou o champagne
Atualmente, nessa batalha que pode levar aos Leões de Cannes, ou aos troféus de outras premiações, há um protagonista determinante: o videocase. Trata-se da peça audiovisual que tem a missão de contar a campanha ao júri e convencer seus integrantes com argumentos que vão desde a mídia espontânea gerada até a apelos emocionais que recorrem a trilhas envolventes e imagens tocantes. Nos últimos tempos, festivais como Cannes, embora ainda focados em premiar “grandes ideias”, passaram a dar mais atenção à eficácia das campanhas — o que transformou alguns vídeocases em delírio do que se gostaria que a campanha tivesse sido.
Aparentemente inofensivos, os fantasmas podem causar grandes crises para agências, marcas e profissionais evolvidos. Em alguns casos, ao ganharem os holofotes globais do tapete vermelho do Cannes Lions, os vieocases anabolizados ou as peças criadas especificamente para ganhar prêmios causam reações que já culminaram na cassação ou na devolução de vários Leões. O caso desse ano, da retirada do Grand Prix concedido a um projeto da Consul e da devolução total de 12 Leões da DM9, por “inconsistências graves relacionadas à veracidade ou legitimidade”, impressionou pelo uso de inteligência artificial para falsificar imagens e vozes de uma reportagem da CNN Brasil e uma apresentação do TED Talks. A repercussão negativa global colocou o festival diante da maior crise de reputação de sua história e abriu caminhos a questionamentos a respeito de outros trabalhos premiados, internacionais e brasileiros, como os que envolvem Africa Creative e LePub.
Fora do Brasil, um dos citados é o vencedor do Grand Prix de PR e outros oito Leões em 2025, “Lucky Yatra”, da FCB India para Railway Service. O case partia do dado de que cerca de 40% dos usuários de trens na Índia não pagam a passagem do transporte público. Como forma de amenizar a questão, a agência propôs transformar o tíquete do trem em bilhete de loteria, e, assim, estimular a população a pagar pelas passagens.

Concorrentes denunciam o case ganhador do Grand Prix de PR de 2025 como sendo uma “fraude”
Elogiado pelo júri, o case vem sendo criticado por publicitários da Índia, que alegam que a ação não teve visibilidade. Ao site ETBrandEquity, especializado na cobertura do mercado publicitário, o fundador da agência indiana Band in the Middle afirmou que a campanha é uma “fraude” e relatou que a criação dos bilhetes de loteria nem teria chegado a ser, de fato, executada.
Enquanto lida com a repercussão negativa dos questionamentos públicos à veracidade das campanhas que premiou, o Cannes Lions busca saídas para impedir fraudes no futuro e tentar mudar sua própria postura de tolerância às peças-fantasmas, que estimula a dedicação das agências à produção de projetos com foco nos festivais. Por enquanto, o evento prometeu regras mais rígidas e um novo Código de Conduta.
Em edições anteriores, o festival já enfrentou o problema, embora em menor escala. No início dos anos 2000, o evento chegou a negar que criaria uma categoria destinada a peças-fantasmas, em resposta a sugestões de que essa seria a melhor saída para evitar polêmicas futuras. Confira, a seguir, os principais casos de cassações e devoluções de Leões da história do Cannes Lions.
Em 2016, 5 Leões devolvidos
Até então, o maior número de Leões cassados ou devolvidos era de 2016, quando o Cannes Lions pegou de volta 1 Prata e 4 Bronzes.

AlmapBBDO devolveu Leões em 2016: o fantasma (esquentado) da dor de cabeça
Para não correr o risco de ter os prêmios cassados, a AlmapBBDO abriu mão de dois Leões de Bronze conquistados por campanhas criadas para Aspirina e Cafiaspirina, da Bayer. Acusados de sexistas, os três anúncios ganhadores em Outdoor estampavam frases como “Calma amor, não estou filmando isso” (.MOV) e “Relaxa, até parece que eu estou gravando isso” (.MP3). Após a entrega do prêmio, as redes sociais foram invadidas por críticas e o anunciante não aguentou a pressão: confirmou ter aprovado a campanha, mas disse que ela foi criada só para concorrer em Cannes e que a própria agência pagou pela veiculação — a prática da agência pagar ou usar uma bonificação do veículo para publicar a campanha era uma forma clássica de “esquentar” as campanhas fantasmas. Com isso, acabou sendo devolvido também o Leão de Print entregue aos anúncios “Caixa” e “Careca”, que tinham conceito parecido, mas não esbarraram na polêmica sexista.

Projeto da Ogilvy Vietnã dizia tornar venenoso chifres de rinocerontes
A Ogilvy & Mather Vietnã também devolveu um Leão de Prata de Direct e um de Bronze de PR conquistados pela campanha “Saving Africa’s Last Wild Rhinos”, para a ONG Rhino Rescue Project, que dizia ter o objetivo de reduzir a matança de rinocerontes no país. O projeto dizia ter injetado nos animais uma substância inofensiva a eles, mas danosa aos seres humanos, que tornava o chifre do rinoceronte venenoso e, assim, inútil para qualquer finalidade. A agência resolveu devolver os Leões depois de assumir que a ação não foi executada no mercado como indicado no videocase enviado por ela a Cannes.

Aplicativo “I Sea” não passou do “modo teste” e Grey Singapura devolveu Leão
Ainda em 2016, a Grey Singapura devolveu um Leão de Bronze concedido em Promo & Activation para o aplicativo “I Sea”, que se propunha a ajudar a identificar refugiados em perigo por meio de imagens de satélite. Entretanto, usuários descobriram que o aplicativo não funcionava. A agência disse que ele estava em “modo teste”, mas optou por devolver o prêmio para encerrar a polêmica.
Acusação de pedofilia tira dois Leões da Moma

Campanha da Moma para Kia Motors ganhou (e devolveu) 1 Prata em Press e 1 Bronze em Outdoor
Em 2011, o Cannes Lions cassou dois Leões concedidos à uma campanha da Moma para Kia Motors. As peças “Professor” e “Princesa”, que receberam um Leão de Prata em Press e um de Bronze em Outdoor, foram acusadas de incitar a pedofilia. Os anúncios, destinados a promover o recurso de controle climático quente e frio do Kia Sportage, tinham estilo de história em quadrinhos, imagens familiares de um lado, justapostas com fantasias adultas atrevidas do outro, incluindo um professor ajudando uma garota do ensino fundamental. A marca negou ter aprovado a campanha, mas a veiculação de fato ocorreu. Após acerto com a Kia, a Moma acabou não enviando ao Festival a comprovação de veiculação das peças, justificando que não queria expor ainda mais os envolvidos. Por essa razão, os Leões foram cassados.
Na ocasião, o festival usou, pela primeira vez, uma punição então recém-instituída de proibir a participação dos profissionais envolvidos como concorrentes na edição do ano seguinte.
A sorte do Brasil em 2010

“Vogais”, da Ogilvy México para Mattel perdeu o GP de 2010, entregue para a AlmapBBDO
O júri concedeu o Grand Prix de Press de 2010 para a campanha “Vogais”, da Ogilvy México para o jogo de palavras cruzadas Scrabble, da Mattel. Os três anúncios totalmente all types contam as histórias de seus protagonistas usando somente uma vogal: “a”, no caso de Abraham; “e”, no de Efren; e “o”, no de Otto. Horas antes da entrega do troféu, o festival cassou a inscrição das peças vendedoras, após descobrir que elas já haviam concorrido em uma edição anterior, o que era proibido pelo regulamento da época, mesmo tendo passado despercebidas e nem chegado ao shortlist na primeira tentativa. Com a desclassificação, o Grand Prix acabou entregue para a série “Música. Entenda do que é feita”, da AlmapBBDO para a revista Billboard, que já havia sido apontada como vencedora de dois Leões de Ouro.
Atrasado, “Tsunami” da DM9 atinge Cannes
Em 2009, o Cannes Lions passou (quase) ileso por uma polêmica que ganhou a mídia em setembro, alguns meses após o festival. A campanha “Tsunami”, da DM9DDB para WWF, foi inscrita no festival, nas áreas de Press e Film, mas não se classificou em nenhuma delas sequer para os shortlist. Portanto, não interferiu no desempenho da DM9 que, naquele ano, foi a vencedora do título de Agency of the Year em Cannes. Meses depois do festival, quando foi publicada por sites internacionais, a campanha revoltou a opinião pública norte-americana, por fazer referência desrespeitosa aos atentados de 11 de setembro de 2001 ao WTC, em Nova York. A campanha usa o fato de o tsunami asiático ter matado mais gente que o ataque às Torres Gêmeas, com a finalidade de alertar a população para os problemas ambientais. Além de reclamar de teor ofensivo, a imprensa norte-americana atacou um erro conceitual das peças, já que a causa do tsunami não está relacionada à destruição da natureza. A WWF condenou a peça e disse que jamais viu e aprovou a criação. A DM9 justificou a criação do anúncio como “fruto somente da inexperiência de alguns profissionais envolvidos de ambas as partes”, pediu desculpas e prometeu rever processos de aprovação e produção de campanhas. O anúncio impresso chegou a ser premiado no One Show com um diploma de Merit, similar a um finalista, mas a distinção foi cancelada meses depois a pedido da agência, após a repercussão negativa internacional.
A polêmica em torno da campanha brasileira desencadeou uma onda nos festivais internacionais com a finalidade de apertar o cerco contra as peças fantasmas. O mais rigoroso foi o One Show, que prometeu punir com cinco anos de afastamento as agências e os profissionais envolvidos em trabalhos desta natureza. Já Cannes foi mais brando, pois não quis inibir inscrições, que ajudam — e muito — a girar o seu business. A organização prometeu banir por um ano, a partir de 2010, profissionais envolvidos em inscrições que não atendam a critérios como a aprovação do cliente e a veiculação em espaço pago pelo anunciante, mas salientou que as infrações serão analisadas individualmente, podendo variar o tipo e a extensão da punição, de acordo com a gravidade de cada caso.
Sexo adolescente reprovado, Leão devolvido
Na edição de 2008 do Festival de Cannes, a Saatchi & Saatchi New York teve um Leão de Bronze de Film cassado. A peça, criada para a JC Penney, não foi reconhecida pelo anunciante, que criticou publicamente o conteúdo da peça, que dava a impressão de que a varejista tolerava o sexo entre adolescentes. Chamado “Speed Dressing”, o filme mostrava dois adolescentes, às vezes apenas com roupas íntimas, exercitando a rapidez com que podiam entrar e sair de suas roupas, para saírem para se divertir, antes que os pais percebessem. O comercial terminava com a mensagem: “Hoje é o dia de se safar”. Segundo a JC Penney, o filme foi criado por um ex-funcionário da agência. A Saatchi & Saatchi, por sua vez, disse que a responsabilidade era da produtora Epoch Films, que inscreveu a peça em Cannes e acabou abrindo mão do Leão. Algumas semanas depois do festival, a agência demitiu produtor executivo Colin Pearsall e o diretor de criação Kerry Keenan.
Rixa, dissidência e devolução

Campanha em defesa do aborto teve Leão devolvido em 2006
Em 2006, a Giovanni FCB devolveu o Leão de Bronze dos anúncios “Ovo”, “Chupeta”, “Feto” e “Ursinho”, criados para a ONG Ipas, que prega o direito das mulheres ao aborto no caso de gravidez indesejada, após repercussão negativa junto à Igreja Católica. A agência disse que a ONG não era sua cliente e que as peças foram criadas e inscritas em Cannes por ex-funcionários, à revelia da direção geral. Fernando Campos, que assinava a direção de criação e havia saído da Giovanni para fundar a Santa Clara, declarou que a ex-agência atendia, sim, o Ipas, mas que era direito do antigo patrão não receber o prêmio.
Legitimidade questionada, Leão devolvido

Filme da Lew’Lara para Schincariol concorreu dois anos seguidos e precisou devolver um Leão
Também em 2006, a Lew’Lara abriu mão de um Leão de Bronze conquistado na área de Film, com o comercial “Ilusão de ótica”, criado para o Grupo Schincariol, com temática de responsabilidade no consumo de bebidas alcolólicas. O problema aqui foi que a mesma peça já havia concorrido no ano anterior. O comercial foi veiculado em emissoras de TV aberta no início de 2005 e inscrito na edição de Cannes daquele ano, na subcategoria Beverages, com o título “Glass”, mas nem chegou ao shortlist. Enviado, novamente, à Cannes em 2006, com o nome de “Optical Illusion”, concorrendo em outra subcategoria, de Public Health, a peça saiu vitoriosa, com um Bronze. Depois de ser questionada, a agência explicou que havia ocorrido um erro de inscrição no primeiro ano, com o filme disputando em uma subcategoria inadequada. Apesar de defender a conquista, a Lew’Lara preferiu abrir mão do prêmio, justificando que “um Leão cuja legitimidade é questionada não enaltece nem a agência, nem o Festival”. Na ocasião, as regras proibiam que uma mesma peça fosse inscrita em mais de uma edição do evento. No dia seguinte à decisão da agência, o Cannes Lions anunciou que cassaria o Leão que a agência já havia dito que devolveria.
Anunciantes inexpressivos merecem GPs?

Ação criada por brasileiros na Leo Lisboa perdeu o GP de 2003
Por pouco o mercado publicitário de Portugal não ganhou o primeiro Grand Prix do país em 2003. O júri de Press & Outdoor, presidido por Dan Wieden, concedeu o GP de Outdoor para a campanha “O que mais um homem precisa?”, criada para a livraria Ferin na Leo Burnett Lisboa por um grupo de brasileiros: Ícaro Doria (redator), Carsus Dias (arte) e Alexandre Okada (diretor de criação). Os anúncios all type traziam longos textos extraídos de livros e terminavam com um convite: “Se uma página faz você pensar, imagine um livro”. Após a decisão do júri, surgiram rumores de que a campanha seria fantasma. Por isso, antes da entrega do troféu, Wieden pediu provas de veiculação e concluiu que não houve pagamento para a inserção em mídia e que os cartazes haviam sido expostos em pontos não contratados — o que contrariava as regras. O júri voltou a se reunir e concedeu o GP de Outdoor para “No Bugs”, da Grey Auckland para Kiwicare, cujas peças mostravam a visão que o inseto tem quando alguém lhes aponta o inseticida.
A polêmica aconteceu em uma época em que o Cannes Lions tentava evitar conceder GPs a anunciantes inexpressivos — o que sempre reavivava questionamentos sobre peças criadas para festivais, como havia ocorrido com a vencedora do GP de Outdoor do ano anterior, 2002, entregue a um estúdio de piercing de Oslo.
“Nunca vi essa campanha”

“Embalagem”, da DPZ para KY, da Johnson & Johnson: 2 Ouros cassados em 2002
Em 2002, o festival cassou 2 Leões de Ouro, em Press e Cyber, conquistados por “Embalagem”, da DPZ para o lubrificante íntimo KY, da Johnson & Johnson, após o anunciante afirmar que desconhecia as peças, além de informar que a agência que atendia o produto era, na verdade, a McCann-Erickson.
Mais de um mês após o evento, a organização do festival retirou da Giovanni FCB os pontos atribuídos à inclusão no shortlist de Press dos três anúncios da campanha “Bandeiras”, criada para a ONG Médicos Sem Fronteiras, após a instituição dizer que não havia aprovado as peças que causaram polêmica por mostrarem imagens como a de um palestino ferido na cabeça, onde levava a bandeira de Israel.
Naquele ano, a organização do festival chegou a negar que criaria uma categoria destinada a peças fantasmas, em resposta a sugestões de que essa seria a melhor saída para evitar polêmicas futuras.
Em 2000, Lowe Lintas Sydney devolveu dois Leões
Dois Leões foram devolvidos no ano 2000 pela Lowe Lintas Sydney. Em deles foi um Bronze, conquistado em Press, com anúncio para o Zoológico de Taronga, na Austrália. Quem alertou para o fato do seu anúncio ser fantasma foi o próprio anunciante, que revelou que havia rejeitado a peça sugerida, porque retratava os animais de maneira contrária à filosofia do zoológico. Além disso, a conta publicitária do anunciante não era atendida pela agência. A partir daí, a própria Lowe Lintas promoveu uma investigação interna que descobriu um padrão de fraude, caso que terminou com a demissão do diretor de criação Mark Shattner e com a devolução de um segundo Leão de Bronze, conquistado em Film, com comercial criado para os recipientes de plástico da Artel Australia.