Cannes Lions

Medidas do Festival serão suficientes contra fantasmas?

Profissionais analisam se novos critérios de conduta serão capazes de coibir cases fantasmas e evitar novas polêmicas na indústria

i 10 de julho de 2025 - 6h01

Cannes Lions

Organização do Festival promoveu endurecer as regras para verificação de uso de inteligência artificial nos trabalhos (Crédito: Celina Filgueiras)

Além de cassar os dois Leões que haviam sido entregues à DM9 pelo case “Economia Eficiente de Energia”, a organização do Cannes Lions anunciou algumas medidas para tentar coibir outros episódios polêmicos envolvendo aquela que é a principal premiação da indústria criativa do mundo.

“O Cannes Lions introduzirá uma série de medidas aprimoradas para garantir que os prêmios permaneçam robustos na era do conteúdo sintético, da mídia e da IA generativa”, prometeu a organização, em comunicado.

O festival prometeu que, a partir dos acontecimentos deste ano, criará um Código de Conduta mais aprimorado, que deverá ser assinado por todas as organizações participantes do evento, incluindo agências, anunciantes e produtoras.

Esse documento terá, por exemplo, a determinações de que agências e anunciantes informem quando a inteligência artificial for utilizada como parte do processo de inscrição dos cases. Caso não o façam, estarão sob o risco de serem excluídas da premiação.

A IA e a reputação

Embora a organização do Cannes Lions tenha centralizado na inteligência artificial boa parte da resposta relacionada às polêmicas deste ano, a tecnologia está longe de ser a única questão envolvida nessa crise de reputação que o Festival enfrenta.

Além do case cassado da DM9 – e de outros dois, da própria agência, cujos Leões foram devolvidos por inconsistências nos trabalhos – os dias posteriores a edição de 2025 do Festival tem sido permeados por diversos apontamentos de cases, do Brasil e de outros países, que também teriam desrespeitado as regras da premiação.

Africa e Le Pub tiveram dados de peças premiadas questionados. Vencedora do Grand Prix de PR, a FCB India também está no alvo dúvidas sobre os dados apresentados pelo trabalho “Lucky Yatra”. Já a Gut Amsterdam vem recebendo apontamentos de que seriam outras agências da Holanda e não ela a responsável pela ideia do case que lhe rendeu um Leão de Ouro em Creative Effectiveness.

Além da credibilidade das agências envolvidas, casos assim colocam em questionamento a reputação do festival, que em última instância chancela e enaltece ao mercado os trabalhos que deveriam pavimentar o futuro da indústria criativa.

Profissionais brasileiros que já participaram do júri do Cannes Lions analisam que a postura mais inflexível em relação a manipulações tecnológicas é algo bem-vindo, mas que pode não resultar na solução completa.

Para Ian Black, co-CEO & partner da New Vegas, que foi jurado na categoria PR na edição do Cannes Lions 2024, a IA está longe de ser o problema principal dessa crise de reputação do Cannes Lions e da criatividade internacional. “O problema real não é a IA. O real problema é a inconsistência factual e a tolerância histórica que o próprio festival sempre demonstrou em relação a ela”, aponta.

Na visão do criativo, a IA apenas torna mais fácil uma prática antiga de forjar dados e ampliar repercussões de trabalhos para valorizá-los diante dos jurados. A questão de fundo, segundo ele, continua a mesma: “os festivais ainda premiam com facilidade aquilo que ‘parece ter acontecido’ em vez do que realmente aconteceu”.

A organização do Festival, na visão de Black, falha em não apresentar medidas em torno da criação de práticas de fact checking. “Não há uma revisão dos critérios de verificação no momento da inscrição dos cases, nem treinamentos específicos para jurados, tampouco a sugestão de criação de bancas técnicas ou especialistas independentes cuja única função seria verificar a veracidade das alegações feitas. Ou seja, o festival segue estruturado para julgar estética e ideia — e não consistência factual”, destaca.

Apresentação presencial e efeito na indústria

Felipe Simi, CEO and Creative Chairperson da Droga5 São Paulo, participou desta edição como jurado na categoria Glass. Essa divisão, assim como Titanium e Innovation, tem um formato diferente de avaliação: o júri define os finalistas antes do início do Festival e, no evento, há uma apresentação presencial feita pelas agências e marcas envolvidas em cada case.

Essa prática, na visão de Simi, permitiria uma avaliação mais aprofundada dos trabalhos inscritos já que os jurados fiquem livres para fazer perguntas às agências e aos anunciantes. “Esse formato nos permite mergulhar mais profundamente no impacto das grandes ideias. Claro que não é viável adotar isso em todas as categorias, mas acredito que existem caminhos possíveis entre depender quase que exclusivamente de um videocase e ter a chance de ouvir diretamente quem está por trás do trabalho”, aponta o CEO.

Simi destaca, no entanto, que a promessa de implementar medidas mais criteriosas em relação ao uso de IA é uma postura importante e corajosa por parte do Festival e pontua que, como autenticidade foi algo muito explorado no palco das premiações deste ano, a iniciativa ao menos aponta um caminho para que a organização alinhe o discurso com a prática.

Com exceção dos trabalhos da DM9, a organização do Cannes Lions não se manifestou sobre qualquer investigação a respeito dos outros cases e trabalhos cujas inconsistências vêm sendo apontadas nas redes sociais e em reportagens de diversos veículos. A reportagem de Meio & Mensagem vem tentando questionar o Festival ao longo dos últimos dias para questionar sobre novas investigações. As mensagens, porém, não são respondidas.

Do ponto de vista do Festival, a situação é delicada porque tais apontamentos colocam em questionamento a real capacidade da premiação em avaliar cases e, também, a falta de definição – ou de aplicação – de critérios mais rígidos de verificação e checagem dos trabalhos apresentados.

Já para a indústria publicitária, essas polêmicas trazem inevitáveis questionamentos. Ainda que sejam algumas agências envolvidas, o segmento criativo, como um todo, não opera no vácuo, como pontua Graziela di Giorgi, fundadora da consultoria The Human Rise. Quando uma parte do sistema falha, lembra ela, o todo também perde a credibilidade.

“Do ponto de vista dos clientes, há um histórico que joga contra os prêmios, que foi solidificado com a ‘ideia pela ideia’, a criatividade como fim. Mas, nos últimos anos, algo começou a mudar. Clientes passaram a frequentar Cannes, houve um alinhamento maior da criatividade com a estratégia, ajudando a aprovar ideias ousadas, inovadoras, orientadas a resultados”, destaca, pontuando que ganhar prêmios, assim como para as agências, também se tornou uma ambição para as marcas.

Fraudar prêmios rompe essa lógica pois confirma que a criatividade é vista como fim e não como alicerce do trabalho. “Quando criatividade vira fim, um troféu colecionável, a lógica da relação muda, os vínculos se fragilizam, as relações caem em dinâmicas imediatistas e superficiais, de surfar a onda do momento, e não de construir relações baseadas em compromissos mútuos por resultados que importam ao longo do tempo”, aponta. Resolver isso, segundo Graziela, depende de medidas que fortaleçam todo o ecossistema, como responsabilidade compartilhada e auditoria externa para verificação de fraudes.

Considerando que este ano era para ser lembrado como o da consagração da criatividade brasileira em Cannes, o futuro da imagem da indústria de criativa pode sofrer impacto. Amabile Vieira, diretora da Scopen pontua que esta foi a segunda vez, em 72 anos de história, que o festival chegou ao ponto de retirar um Grand Prix. “Isso abre espaço para várias reflexões, sendo a principal delas com relação à ética na publicidade, ainda mais considerando o entorno cada vez mais complexo que enfrentamos com fake news, novas tecnologias, IA etc. É importante que, como humanos e profissionais, respeitemos sempre a verdade”, analisa.