O perigo de estar lúcida
Publicitários estão mais para vendedores que para artistas, mas isso não quer dizer que não possamos nos inspirar nos gênios para criar de formas diferentes

(Crédito: Cristina Conti/Shutterstock)
Como novata no mercado editorial, mas veterana no planejamento estratégico, não pude deixar de notar as ondas temáticas de lançamentos de livros. Teve uma sobre o fim do mundo em 2020, seguida de uma considerável safra de obras lidando com o luto que dura até hoje. Mais recentemente, dois títulos foram lançados no mesmo mês tratando da associação entre criatividade e instabilidade mental: “O perigo de estar lúcida” (Todavia, 2023), da espanhola Rosa Montero, e “Maniac” (Todavia, 2023), do chileno Benjamin Labatut, que já tinha ficcionalizado a vida de gênios atormentados da ciência em “Quando deixamos de entender o mundo” (Todavia, 2022).
A leitura desses livros me fez refletir sobre a criatividade na publicidade. Entendo as dificuldades de fazer essa associação, já que o ambiente corporativo implica elementos distintos, para além da livre inventividade artística. São muitas as exigências e formatos definidos na criação para marcas, e depois, a necessidade de um resultado objetivo e eficaz, coisa que nem todo experimento criativo prescinde. Um é comércio, o outro é arte. No ambiente corporativo, debater as características necessárias para a criatividade tem sido uma temática sensível, uma vez que por muito tempo significou altos níveis de obsessão, energia sobre-humana e perfeccionismo para chegar no impacto desejado por agência, cliente e demais stakeholders. Sobretudo porque o tempo, o dinheiro e as condições envolvidas nem sempre estão à altura da demanda.
Publicitários estão mais para vendedores que para artistas. Mas ainda que o objetivo final seja a conversão, não quer dizer que não possamos nos inspirar nos gênios para criar de formas diferentes e inesperadas. Rosa Montero fala das substâncias de que artistas, especialmente escritores, fazem uso para trabalhar. Muito mais droga do que salada. Ela aponta a necessidade de silenciar o eu inconsciente e controlador, aquele que o tempo todo diz que você não é capaz, “não sabe nada, não vale nada, não vai conseguir, todos os outros são melhores, você é uma impostora, vai fazer um papel ridículo, renda-se de uma vez à adversidade.” Imagino que isso seja familiar a muitas. A brilhante Sylvia Plath dizia que “o pior inimigo da criatividade é a insegurança, a dúvida interna.” Como calar a vozinha que insiste no não?
Se por anos a crença foi na manutenção do gênio criativo e irascível, e no abuso de substâncias para se anestesiar, tenho lido sobre a importância do ambiente seguro para criar, e acredito cada vez mais nisso. Um lugar de possibilidades que por tanto tempo foi vedado às mulheres. Pois se aos homens foi dado o privilégio de serem considerados gênios criativos, a elas restou o diagnóstico de desequilibradas e descontroladas. Desse lugar me parece vir a ambiguidade do título do livro. Sem a possibilidade de extravasar seus impulsos criativos, coube à infinidade de mulheres criativas o olvido, e “O perigo de estar lúcida” fala de algumas delas, mas não é capaz de esgotar as limitações que gênero e raça impuseram à criatividade feminina.
E talvez sejam elas quem serão capazes de criar esse espaço de confiança e segurança para a inventividade. Porque é em um espaço que permite erros e convida para experimentações que a criatividade floresce, e não apenas no anulamento ou stress dos sentidos. Um lugar que também privilegia o “ritmo coletivo” na criação, o “fluxo de equipe” que estimula a contribuição de diferentes cabeças. As aspas são da Rosa Montero, que depois de tanto falar de gênios solitários, mais pra frente, no livro, compara criação a uma dança. Pode ser individual, mas é muito mais legal quando acontece junto.
Reconheço que não basta as empresas construírem esse espaço seguro. O ambiente familiar e afetivo das pessoas importa. A trajetória de cada uma, a maneira como suas sensibilidades e relações se desenvolveram, e quem ela é, na sua integralidade, afetam o trabalho criativo. O jeito que cada uma chega até o escritório conta, e muito, para a construção desse lugar de conforto e segurança. Mas penso que reconhecer e refletir sobre essas possibilidades é relevante. E sobretudo considerar a criação como resultado de um ambiente seguro coletivo como ponto de partida, para além de apenas insistir na falácia da necessidade de pressão e alta intensidade pela criatividade genial. Especialmente porque sem desmerecer a relevância do nosso ofício, não ganhamos Nobel, apenas vendemos.