O que torna uma campanha icônica?

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O que torna uma campanha icônica?

Especialistas analisam o papel das emoções e narrativas em fazer com que comerciais como “1984” e “Daisy” permaneçam no inconsciente coletivo


25 de novembro de 2020 - 6h00

(Crédito: AdAge/ Reprodução)

Por I-Hsien Sherwoo, do AdAge

Em agosto, a Epic Games lançou um comercial familiar. A desenvolvedora do game Fortnite parodiou o anúncio mais famoso de todos os tempos da Apple, “1984”, com um remake que protestou contra as políticas da empresa que removeu o jogo daApp Store. Mas a paródia “Nineteen Eighty-Fortnite” seria um truque sem sentido se o filme, de 26 anos atrás, não fosse reconhecido imediatamente. Independentemente das opiniões sobre a Apple, “1984” se firmou no imaginário coletivo da sociedade moderna. É um símbolo cultural que pode ser referenciado, emulado, caricaturado e até divorciado de seu significado original. A Apple pode até ser dona dos direitos autorais, mas o filme pertence a todos agora.

O que acontece com as campanhas que ficam marcadas na psique? O que faz com que eles tenham residência permanente no inconsciente coletivo? Como são feitos? Obviamente, não existe uma fórmula confiável para criar um comercial que faça isso. Caso contrário, todo anúncio seria icônico. Mas a memória é inconstante e a magia que torna uma campanha inesquecível não é um jogo resolvido, mas uma combinação de habilidade, tempo e engenharia social – e um pouco de sorte.

Truques do comércio

Em 1993, o California Milk Processor Board, um conselho de marketing financiado pelos processadores de laticínios da Califórnia, estava procurando uma nova mensagem. “Milk, It Does a Body Good”, uma campanha um tanto memorável, foi o discurso de vendas da leiteria nos anos 1980. Mas o foco nos benefícios tangíveis, como cálcio, proteína, ossos e músculos fortes, não conseguiu evitar a queda nas vendas de leite, à medida que os consumidores abandonaram o que consideravam uma bebida infantil para refrigerantes, bebidas esportivas e a crescente indústria de água engarrafada.

Alguns médicos e nutricionistas também questionaram as alegações de benefícios à saúde. Os comerciais não eram apenas ineficazes, mas eram também contestáveis.

Com isso, a Goodby Silverstein & Partners teve uma ideia que não tinha nada a ver com o que o leite poderia fazer pelo consumidor. A campanha “Got Milk?” focou no que pode acontecer quando o leite acabar, com um comercial que apresentou uma geração inteira ao assassino do político norte-americano Alexander Hamilton, Aaron Burr, história que posteriormente inspirou a peça da Broadway.

“Leite não é a coisa mais importante na sua vida, e ‘Got Milk?’ reconheceu isso ”, disse Jeff Goodby, cofundador e copresidente da agência. “É realmente apenas uma mercadoria. A única questão é: você tem ou não?”, afirmou sobre a campanha. “Usamos mitologias irrealistas para transmitir um ponto muito simples, porque é isso que ficaria na cabeça das pessoas”, diz Goodby.

Jogos mentais

O “grude” dos filmes de “Got Milk?” se dá por conta das peculiaridades da memória humana. Os cérebros são, por sua natureza, ignorantes e esquecidos. Eles precisam ser porque são continuamente bombardeados por estímulos visuais, auditivos e táteis. A mente está sempre analisando esse fluxo de dados, em busca de informações que possam ser importantes o suficiente para serem retidas.

“Você provavelmente se lembra da primeira vez em que andou de bicicleta, mas não se lembra do que comeu no café da manhã ontem”, comenta Shahram Heshmat, professor associado emérito da Universidade de Illinois, em Springfield, onde ensina economia comportamental e saúde. “Se alguém nos conta uma história, nós nos lembramos muito bem. Mas, se alguém apenas nos dá fatos, nós realmente não fazemos o mesmo. ”

Sim, apesar de sua reputação de palavra da moda usada em demasia, o storytelling — criação de personagens reconhecíveis e relacionáveis ​​que agem de maneiras confiáveis ​​– ajuda os espectadores a organizar e relembrar informações.

Conteúdo emocional, contexto emocional

A codificação das memórias ocorre em nível molecular, em uma mistura de neurotransmissores e hormônios que muda em resposta a estímulos internos e externos. E as emoções são uma das influências mais fortes na memória. “Quando as coisas são emocionais, são como um laser”, afirma Shahram Heshmat. “Isso imprime algo em nossa memória.”

É por isso que apelos ao medo funcionam tão bem. Na eleição norte-americana de 1964, a campanha “Daisy”, do candidato Lyndon Johnson, levantou o espectro da guerra nuclear. A agência DDB aproveitou as preocupações de uma nação em estado de pavor constante para atacar o oponente Barry Goldwater, que já possuía a imagem de um político de extrema direita e foi relacionado a uma ameaça de guerra nuclear, embora Goldwater nunca seja citado no filme. Johnson venceu a eleição com uma vitória esmagadora.

Durante os momentos de estresse os hormônios epinefrina e cortisol ajudam a consolidar as memórias, para melhor recordar as informações necessárias para a sobrevivência futura.

Mas quando se trata de memória, o corpo não distingue entre sentimentos bons e ruins. “Todas essas emoções vêm da mesma parte do cérebro, a amígdala”, explica o professor da Universidade de Illinois. “Não é como se houvesse uma determinada área para emoções positivas ou negativas.” Durante as experiências prazerosas, a serotonina e a dopamina têm a mesma função dos hormônios do estresse, facilitando a conversão de experiências efêmeras em memórias. Anúncios engraçados, piegas, assustadores, sensuais ou provocantes, todos desencadeiam uma necessidade primária de absorver e reter informações.

Mas mesmo um conteúdo inócuo pode ser memorizado nas circunstâncias certas. A maioria das pessoas com mais de 25 anos consegue se lembrar onde estava no 11 de setembro, mesmo que estivesse vivendo um momento banal. O contexto substitui o conteúdo. Essa premissa também explica o sucesso dos comerciais no Super Bowl, que se tornou uma vitrine publicitária.

A Chiat/Day entendeu tão bem o poder da plataforma que escondeu o lançamento de “1984” em uma transmissão realizada pouco antes da meia noite na véspera do Ano Novo, em uma única estação de TV, no Sul de Idaho, garantindo que praticamente ninguém visse o comercial antes dele ir ao ar no Super Bowl XVIII.

A galinha e o ovo

Os estrategistas se orgulham de conseguir emergir em conversas culturais, captar rumores subconscientes e levar o “espírito do tempo” para um projeto. Às vezes, eles conseguem.

“1984”, da Apple, funcionou em vários níveis, falando com diversos segmentos da sociedade que estavam descontentes. O clássico literário de George Orwell estava retomando a popularidade no ano que levava seu nome, então a homenagem apresentava uma direção estética clara. A escolha de Ridley Scott para dirigir, já famoso pelas distopias futurísticas de “Blade Runner” e “Alien”, concretizou o tom.

Os conservadores preocupados com a persistente Guerra Fria com a União Soviética poderiam apreciar o aceno para o elogiado anticomunista. Os liberais pegos no meio da Revolução Reagan viam paralelos com seu próprio governo. Os técnicos irritados com o domínio da IBM poderiam se identificar com o anunciante. E todos podiam se imaginar como solitários e ousados ​​lutando pela liberdade.

Mais de uma década antes, a Coca-Cola fez o mesmo. Em 1971, “Hilltop” foi uma mudança marcante no posicionamento da gigante dos refrigerantes. “A estratégia da Coca antes desse comercial era apenas pregar sua superioridade”, conta Timothy D. Taylor, professor de etnomusicologia da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e autor do livro “The Sounds of Capitalism”.

“As campanhas da Pepsi eram sobre ‘Pense Jovem’ e ‘Geração Pepsi’. Era tudo sobre estar no grupo descolado que bebe Pepsi e a Coca-Cola adotou essa posição com aquele anúncio”, explica o professor. Hilltop, criado pela McCann Erickson, apresentava um coral multicultural segurando garrafas de Coca etiquetadas em diferentes idiomas, o tipo de imagem associada à contracultura.

Em 2013, quatro anos antes do movimento #MeToo entrar em cena, a campanha “Like a Girl”, de Always, foi capaz de explorar a crescente frustração pública com a misoginia sistêmica. “Acho que a publicidade em sua melhor forma hoje se trata de realmente refletir e conectar-se com seu público por meio da verdade”, contou AJ Hassan, vice-presidente diretor executivo de criação da R/GA Chicago.

Pense diferente

As campanhas que alcançam o status de ícone geralmente o fazem porque mudam o status quo, seja na indústria ou na sociedade como um todo. Mas eles também costumam compartilhar o pecado capital da indústria: os rostos por trás deles são muito brancos e muito masculinos.

Houve algumas mudanças nos últimos anos. Na campanha “Like a Girl”, “a maior parte da equipe criativa, a maioria da equipe da marca, a maior parte da equipe do cliente, a maioria de nossa equipe de parceiros de mídia eram mulheres”, diz Hassan. “Sem dúvida foi um fator crítico para contar a história da maneira mais autêntica.”

*Tradução: Taís Farias

**Crédito da foto no topo: DKosig-iStock

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