Rua Maria José, 432, casa 19

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Opinião

Rua Maria José, 432, casa 19

Lembranças de Madureira, por meio de amizades e trilha sonora


13 de agosto de 2018 - 15h52

Considero provinciana e até um tanto retrógrada a pessoa que se recusa a ampliar suas fronteiras e a conhecer coisas distantes, talvez até opostas às que conheceu no tempo-espaço da infância e da juventude. Mas acho ainda piores aqueles que, ao conhecerem novos lugares e pessoas, passam a borracha nas coisas que ficaram para trás, como se elas fossem cicatrizes de uma guerra que se deseja esquecer. Por outro lado, possuo um profundo respeito por pessoas que, por mais humildes ou incomuns que sejam suas origens, sabem valorizá-las e homenageá-las ao longo das respectivas trajetórias de vida. Não por acaso, o nome da minha empresa no Brasil é Madureira Participações Ltda: para que eu jamais me esqueça do subúrbio carioca onde nasci. E foi pensando nisso que me transportei para um dos endereços da minha infância absurdamente feliz e livre na zona norte carioca. Um tempo de descobertas e de definições de coisas que marcam nossas vidas, como o gosto musical.

Eu posso dizer que descobri verdadeiramente a música no início da década de 1970, quando a família Caetano vendeu a casa 3 da Vila da Light — na Rua Maria José, 432, em Madureira — e se mudou temporariamente para a casa 19 da mesma vila, enquanto a atual casa da minha mãe, no número 959 da mesma rua, estava sendo construída. A Vila da Light era assim chamada porque nela moravam famílias de funcionários da tradicional empresa de origem inglesa. Meu avô materno foi cobrador, motorneiro e, finalmente, fiscal dos saudosos bondes da Light, o que lhe deu o direito de comprar uma casa na vila por meio de suaves prestações. Quando meus pais se casaram, passaram a dividir a casa com os meus avós, sob promessa de que um dia se mudariam todos para uma casa maior. Como a família precisou vender a casa da vila para pagar os custos finais do imóvel maior, que ainda levaria um bom tempo para ficar pronto, o jeito foi alugar outra casa na própria vila. Por conta desse aperto, a mudança da casa 3 para a casa 19 foi bastante improvisada, “uma mudança de ciganos”, nas palavras de meu pai, com as pessoas da vi- la ajudando a carregar nossos pertences de uma residência para a outra, em fila indiana, como um formigueiro.

Minha mãe sempre diz que foi na casa 19 que ela viveu seus anos mais felizes, sem dar maiores detalhes sobre as razões de tal percepção. Provavelmente o casamento entrou numa fase mais pacífica e romântica ou foram momentos de entusiasmo com o sonho da casa nova e maior, eu não saberia dizer. Mas, para mim, aqueles foram os tempos mais cheios de descobertas da minha infância. Na casa 19 eu vi a Copa de 1974, aprendi a jogar botão muito bem, me apaixonei perdidamente pelo Fluminense e, como disse, descobri a música, a boa música, a música negra americana. Graças, curiosamente, a um grupo de nordestinos. Isso porque a casa 17, colada na nossa, era ocupada por um enorme grupo de paraibanos e potiguares que moravam ali em sistema de república, dividindo os cômodos da casa entre eles, de forma um tanto caótica. Fora os donos da casa, mais velhos, todos os demais ocupantes eram jovens ou crianças — e os jovens, estimulados pelas trilhas sonoras internacionais das novelas da Globo, como Selva de Pedra, Cavalo de Aço e pelo Baile da Pesada, programa do DJ Big Boy na Rádio Mundial, adoravam música americana. Eles ouviam música alta o dia todo, e isso era simplesmente extraordinário.

Uma das meninas desse núcleo, a Aninha, virou minha “namorada”. De brincadeira, claro, pois eu tinha apenas sete anos quando me mudei para lá. Recordo que formamos o casal de noivos na festa junina da vila — e aquilo foi o mais próximo que cheguei da glória, naqueles tempos inocentes. Mas a minha grande amiga daquela época se chamava Ângela, uma mulata potiguar, dois ou três anos mais velha, muito alta e esguia, que até gostava de ouvir música, mas cuja grande paixão era mesmo jogar bola com os meninos, o que fazia formidavelmente. Se a Ângela se comportava como um menino por uma questão de orientação sexual ou meramente esportiva é algo que nem sequer passou pela minha cabeça naqueles tempos. De forma que, para mim, Ângela era apenas uma menina que gostava de jogar futebol, botão e bola de gude, de acompanhar o noticiário dos clubes do Rio pelo rádio (ela era Flamengo, e eu, Fluminense) e que ficava aborrecida quando dizíamos que ela era paraibana, pois, como fazia questão de dizer, era potiguar.

“Possuo um profundo respeito por pessoas que, por mais humildes ou incomuns que sejam suas origens, sabem valorizá-las e homenageá-las ao longo das respectivas trajetórias de vida”

Um dia, a família da Ângela foi embora. Não recordo se foram para Natal, no Rio Grande do Norte, ou diretamente para Brasília, onde, conforme ela me contou numa das poucas cartas que trocamos, se tornou campeã de provas de salto competindo pelo Ceub. Antes de ir embora, a Ângela roubou um compacto de vinil da coleção dos primos e agregados e me deu de presente. O disco estava todo assinado pela turma mais velha, que sempre me despertou inveja sobre as maravilhas de ser jovem, de comprar seus próprios discos, de poder ver O Exorcista e O Poderoso Chefão sem ser barrado no cinema, de sair de casa e voltar a hora que quiser e de fazer sexo — algo que fui desconfiar do que era no dia em que a Ângela, espantada, veio contar para a turma dos meninos o que viu um primo e uma prima fazendo na rede de um dos quartos. Nós ficamos profundamente estarrecidos e demoramos anos para finalmente descobrir que a descrição feita pela amiga era, de fato, precisa.

Mas eu estava falando do disco, que era de Little Anthony & The Imperials, com um dos grandes hits da última novela das oito: I’m Falling in Love with You. Essa foi uma das grandes canções da época, dominada pelo romantismo do chamado Philly Soul (Blue Magic, Delphonics, Dramatics, Stylistics, entre tantos outros grupos vocais), pela agitação do funk de James Brown e pelo swing da turma da Motown e da Stax. Durante muitos anos, entesourei aquele disco com o selo roxo da Avco Records como a mais preciosa das minhas memórias de infância. Ele foi o primeiro disco da minha coleção, que um dia viria a ser bem grande. Graças a esse disco, à Ângela e aos nordestinos vizinhos, eu passei a venerar a música negra norte-americana — minha grande paixão até hoje.

Nunca mais voltei a ver a velha amiga ou qualquer um daquela turma que veio de longe tentar a vida no Rio, mas a sua trilha sonora ecoa em meus ouvidos até hoje. Para honrar essas memórias, criei uma playlist no Spotify, com o título de “Rua Maria José, 432, casa 19”. Por meio dela, vocês poderão ouvir e sentir o espírito de uma época na qual, numa humilde vila de Madureira, ecoavam pela eletrola os mais belos acordes e falsetes da Philadelphia, de Memphis e de Chicago. É um presente que deixo para vocês — e para a minha amiga Ângela, se um dia essa coluna chegar às suas mãos.

*Crédito da foto no topo: RawPixel/Pexels

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