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Opinião

Cultura tóxica: vocês estão preparados para esta conversa?

Estou certa de que provoquei dor em pessoas que trabalharam comigo, reproduzindo o modus operandi que era tido como case de sucesso


10 de setembro de 2020 - 14h39

(Crédito: Holaillustrations/istock)

Ser humano é bicho complicado, né não? Obviamente, humana que sou (embora talvez nos últimos meses meu marido e meu filho discordem), me incluo nessa. Eleve as complicações à enésima potência em tempos de redes sociais. Demandamos transparência de marcas e pessoas, mas nunca usamos tantas máscaras — literal e metaforicamente –, com medo de sermos julgados, mal interpretados, perseguidos e, por fim, cancelados. Exigimos humanidade de marcas e pessoas, mas não toleramos erros. Ou toleramos os que nos convêm.

Não consigo parar de pensar: será que estamos preparados para entregar ao outro e ao mundo o que tanto cobramos do outro e do mundo? Em outras palavras: estamos aptos a praticar o que exigimos? Ou ainda: quando ninguém está olhando (ou filmando, ou dando print de tela, ou postando), ainda assim somos fiéis aos valores que gritamos em verso, prosa e lacração nas redes?

Há alguns dias, o site Buzzfeed publicou uma reportagem, assinada pelo jornalista Chico Felitti, sobre cultura tóxica e casos de assédio moral praticados por anos nas redações da Globo Condé Nast, joint venture entre Globo e editora Condé Nast que, aqui no Brasil, publica os títulos Vogue, GQ, Casa Vogue e Glamour (revista que dirigi por cinco anos, desde seu lançamento até 2017).

Foram ouvidas 27 pessoas, em on e em off. Eu dei uma entrevista por e-mail e pedi que fosse publicada na íntegra. Queria contextualizar minha dor. Uma dor que tinha mão dupla, porque 1) a senti na pele trabalhando com o alvo das acusações, a jornalista que foi minha chefe na Vogue (onde atuei como redatora-chefe) e quando se tornou diretora-geral da companhia, anos depois; também foi minha concorrente (e aqui adoraria escrever parceira e colega) quando assumi a Glamour; e, finalmente, foi minha antagonista quando decidi sair; 2) estou certa de que provoquei tal dor em pessoas que trabalharam comigo, respondendo à cultura tóxica vigente e reproduzindo o modus operandi que na empresa era tido como case de sucesso.

E quando menciono o modus operandi vigente, não estou falando de tropeços aqui e ali, esses perdoáveis porque somos humanos. Não se trata de resposta atravessada, de grosseria pontual, de barra de exigência alta demais… Disso tudo, me declaro culpada, meritíssimos deste Supremo Tribunal Virtual.

Porém, o buraco cavado pela reportagem é mais embaixo. Escancarado pelos depoimentos corajosos, detectou-se o que eu já sabia: um comportamento tóxico padrão que opera por falta de empatia, senso exagerado de autoimportância, vício em depreciar o outro para reforçar sua superioridade e competitividade desenfreada.

Ao longo dos anos, senti que fui me remendando, me sentindo mais madura e segura para exercer uma liderança em que eu, de fato, acreditava. Há três anos e meio, quando pedi demissão de um trabalho que amava (e do qual, em última instância, eu não queria sair), foi como se tivesse terminado de “pagar” pelos meus erros. A executiva, porém, segue na ativa. Não comentou pessoalmente as acusações, mas a EGCN e a Condé Nast Internacional o fizeram com notas semilacônicas que condenaram os fatos (portanto, não os negaram) e reforçaram a existência de uma ouvidoria para investigar e dar suporte a quem se sentisse desrespeitado. Até o presente momento, pelo menos não publicamente, nada foi feito a respeito das alegações.

Se comportamentos abusivos sempre foram condenáveis, agora eles são intoleráveis, certo? Certo mesmo? Hum, será? A matéria causou rebuliço nas redes sociais, fato. Público comentou, criticou. Leitores e ex-leitores comentaram, criticaram. Fakes atacaram (até a mim). Muita gente alegou que é assim em áreas diversas, de medicina a publicidade, passando por televisão, universo da dança, meio musical. Li de tudo.

No meu mercado, o editorial, humilhações e demonstrações não ortodoxas de poder são tristemente romanceadas – de Diana Vreeland (que dirigiu Vogue e Bazaar americanas) a Regina Guerreiro (que foi diretora da Elle brasileira), passando por Anna Wintour, a atual poderosa da Vogue americana, eternizada em O Diabo Veste Prada.

Mas o que me intrigou mesmo: tirando uma ou outra mensagem que recebi por WhatsApp ou direct, todas privadas, achei a reação do mercado de um silêncio ensurdecedor! Marcas não vieram à público condenar. Outros veículos, salvo raras exceções, preferiram se calar. E os que agiram, basicamente, reproduziram a reportagem. Não vi manifestações de executivos, de marketeiros nem de colegas jornalistas. Gente que não poupou repúdio — guardadas todas as devidas proporções — a Donata Meirelles, a Pugliesi, a Harvey Weinstein…

Por que, hein? Será que estamos, enquanto sociedade, realmente preparados para esta conversa? Adoraria ouvir que sim, fiz minha parte (e doeu fazê-la) para que sim, no entanto, evidências me levam a pensar que não. Será que o teto de vidro das lideranças e das companhias anda tão frágil que é melhor não atirar nenhuma pedra? Será que exigimos rigor, mas não o praticamos em casa? Como diz uma amiga minha, será que ninguém, ninguém mesmo, restaria em pé se tivesse seu WhatsApp hackeado?

Ou ainda: será que relacionamentos éticos nos ambientes de trabalho são como, sei lá, inteligência artificial — algo sobre o qual se fala há tempos e só agora se começou, de fato, a usar? Não sei, não sei. Ser humano é bicho complicado. É, como dizia o poeta, e eu não saberei dizer melhor: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.

**Crédito da imagem no topo: Eugenesergeev/iStock

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