Segredos, patriarcalismo e reputações abaladas

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Opinião

Segredos, patriarcalismo e reputações abaladas

Luta feminina enfrenta sistema judiciário machista e cultura que minimiza gravidade de delitos, especialmente se feitos por homens de alto escalão


25 de maio de 2021 - 13h36

(Crédito: retrorocket-iStock)

Nesta semana, um dos meus filmes favoritos de todos os tempos completa 30 anos. Trata-se de “Thelma & Louise” do diretor Ridley Scott, uma verdadeira ode à liberdade feminina. Acabei assistindo-o novamente para relembrar o porquê foi tão marcante na fase de transição entre minha adolescência e vida adulta e a confirmação de sua atualidade se deu de forma quase catártica. Além de ter protagonizado a primeira selfie (muito antes dessa palavra sequer existir) da história do cinema, as atrizes Susan Sarandon e Geena Davis, em estado de graça, dão vida, respectivamente, às amigas Louise Sayer e Thelma Dickinson em uma viagem ao mesmo tempo de fuga e de descobertas.

A fuga se dá após Louise matar com tiro no peito um homem ao vê-lo tentando estuprar a amiga Thelma. Ao longo da reveladora viagem, perseguidas pelas autoridades, desencadeia-se o feixe de acontecimentos que vão levar as protagonistas para o acerto de contas na estrada. Será na estrada também que elas vão experimentar um grau maior de amizade e, juntas, buscarão lutar contra o opressivo sistema patriarcal, trazendo à tona questões como culpabilidade da mulher em situações de violência sexual, numa trama agressiva gerada por uma série de acontecimentos indesejáveis, mas necessários para que elas possam questionar suas existências.

A alternativa à fuga seria se entregarem à polícia, mas lembram-se de que dificilmente alguém iria acreditar em uma mulher que foi vista, momento antes, dançando com um estranho em um bar dizer que fora vítima de uma tentativa de estupro. Trinta anos depois de Thelma & Louise, essa realidade, pelo menos no Brasil, ainda é terrivelmente atual.

“Há muitas mulheres hoje em dia que elevam suas vozes e apoiam outras que sofreram estupros e abusos sexuais. Hoje em dia essas situações estão deixando de ser um segredo”, comentou Susan Sarandon, durante o Festival de Cinema de Cannes de 2016, quando o filme completou 25 anos. Infelizmente, os segredos sempre existirão, enquanto houver um sistema judiciário machista e que perpetua a impunidade em casos dessa natureza.

Cada um a seu modo, dois episódios recentes envolvendo reputações de pessoas muito poderosas corroboram esse cenário. O primeiro deles refere-se às estarrecedoras revelações da Agência Pública sobre um suposto esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual comandado por Samuel Klein, nas dependências da sede da empresa que fundou em 1957, as Casas Bahia, em São Caetano do Sul (SP), além de outros locais em Santos (SP), São Vicente (SP), Guarujá (SP) e Angra dos Reis (RJ). O filho de Klein, Saul, também é investigado por estupro de mais de 30 mulheres.

A reportagem da Agência Pública ouviu mais de 35 fontes, entre vítimas que acusam Samuel Klein, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família, consultou processos judiciais e inquéritos policiais, dentre outros. Diante disso, o empresário teria sustentado, de 1989 a 2010, uma rotina de exploração sexual de meninas, entre 9 e 17 anos, na sede da empresa e em outros imóveis registrados em seu nome. Além disso, o fundador da famosa rede de varejo teria organizado um recrutamento de meninas para festas e orgias. Como “moeda de troca”, Klein pagava as vítimas e seus familiares e oferecia produtos das lojas.

O então segredo só foi descoberto a partir das recentes denúncias envolvendo Saul Klein, filho do patriarca. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) investiga possíveis casos de aliciamento e estupro de várias mulheres. Dessa forma, a Agência Pública desvendou uma história silenciada por muitos anos. Quase um mês depois de a história ser revelada, em meados abril, a Folha de S. Paulo também entrou mais recentemente nesta cobertura e tem revelado desdobramentos do caso.

As revelações levaram o Instituto Samuel Klein (ISK), criado em 2014, mesmo ano em que o patriarca da família morreu aos 91 anos, a suspender suas atividades. O instituto, que financia iniciativas voltadas à primeira infância e ao fortalecimento de vínculos com a comunidade judaica, tem como mantenedores Natalie e Raphael Klein, netos de Samuel e filhos mais velhos de Michael, primogênito do empresário que ficou conhecido como “rei do varejo”.

O caso Samuel Klein tem sido comparado ao do empresário bilionário norte-americano Jeffrey Epstein, acusado de comandar um grande esquema de tráfico sexual, levando meninas de cerca de 14 anos para sua mansão em Nova York e sua casa na Flórida entre 2002 e 2005. Assim como Samuel, Epstein circulava entre poderosos e celebridades. E foi justamente uma suposta proximidade com Epstein que está na trama que desencadeou o recente pedido de divórcio de Melinda French Gates do quarto homem mais rico do mundo, Bill Gates, com o qual foi casada por 27 anos.

Segundo reportagem do The New York Times, Bill Gates e Jeffrey Epstein teriam se conhecido em 2011, três anos depois de Epstein se confessar culpado de duas acusações estaduais na Flórida. De lá para cá, os dois teriam feito inúmeras reuniões, algumas delas com a presença de Melinda Gates. Em um desses encontros, em 2013, Melinda e outras pessoas disseram ao Daily Beast que ficaram desconfortáveis na presença de Epstein.

Epstein morreu na prisão em 10 de agosto de 2019, em um incidente que foi relatado como suicídio. Mas as conexões de Epstein com pessoas poderosas no mundo da política e do entretenimento levaram a muitas teorias da conspiração sobre ele ter morrido a mando de pessoas que não queriam que ele falasse. A alegada insistência de Gates em manter a proximidade com Epstein era para ter conexões com possíveis doadores para a fundação Bill & Melinda Gates, a maior entidade filantrópica do mundo.

E foi justamente em 2019 que o processo do divórcio entre Melinda e Bill começou. Pesa também nessa decisão o fato de Melinda ter ficado insatisfeita com a forma como seu marido lidou com uma denúncia de assédio sexual, em 2017, contra Michael Larson, diretor da Cascade Investment, fundo responsável pela gestão financeira da fortuna do casal. Depois que Gates decidiu resolver o assunto confidencialmente, Melinda insistiu em uma investigação externa. Larson continua até hoje em seu cargo.

Embora sejam situações bastante diferentes entre si, os casos envolvendo Samuel Klein e Bill Gates trazem uma importante reflexão sobre o limite (ou a falta dele) a que homens com poder e dinheiro podem chegar. Do extremo de manter seus esquemas perversos de submissão e subjugação de corpos femininos e infantis, sem qualquer limitação de recursos e escrúpulos, ao convívio acrítico e amoral com criminosos sexuais confessos, esses dois casos demonstram que episódios assim não são ponto fora da curva.

O desafio de desvendá-los exige a quebra de segredos e a exposição de fatos terríveis que podem desabonar reputações e trazer consequências incalculáveis a um conjunto inestimável de pessoas, projetos e negócios. Uma narrativa necessária e imperiosa para que esses segredos saiam de debaixo dos tapetes dos tronos de alguns donos do poder e ganhem espaço na mídia para que junto com as reputações abaladas se reescreva algumas páginas de uma lenta, mas profunda, transformação protagonizada por mulheres corajosas.

*Crédito da foto no topo: Nick Collins/Pexels

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