O povo preto chegou

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Opinião

O povo preto chegou

Quase 50 anos depois de sua fundação, o Clube de Criação tem uma presidenta preta


5 de novembro de 2021 - 16h57

Pisei pela primeira vez em uma agência de publicidade em 1985, 10 anos depois da fundação do Clube de Criação. Não me lembro o ano exato, mas alguns anos depois eu estava vivendo minha primeira experiência em uma campanha eleitoral municipal, em 1988, e logo depois a primeira presidencial, em 1989 – durante anos contei o tempo pelas eleições, porque elas ocuparam uma parte enorme da minha vida até eu chegar a São Paulo. 35 anos. Uma boa parte das pessoas com as quais convivo hoje não tinha nem nascido, mas o racismo estrutural já tinha feito vários aniversários.

Não era nada comum encontrar pessoas pretas nas agências, nem em clientes, nem em lugar nenhum. Meu primeiro presidente era uma exceção. Curioso que não me lembro se ele se identificava como uma pessoa preta. Também não me lembro de jamais vê-lo falar sobre problemas que tenha vivido nem decorrência do racismo ou levantar bandeiras de inclusão e equidade. Não tenho memória de vê-lo perguntar onde estavam as pessoas iguais a ele no mercado nem mesmo na agência que ele fundou e que chegou a ser uma das mais importantes do país. Era um tempo em que as pessoas privilegiadas realmente pareciam acreditar que estava tudo certo.

Não era nada comum encontrar pessoas pretas nas agências, nem em clientes, nem em lugar nenhum (Créditos: Maria Siubar/shutterstock)

Muitas vezes controverso, esse homem chegou onde poucas pessoas brancas chegaram e onde quase nenhuma pessoa preta chegou até hoje. Foi capa da Exame e destaque em importantes premiações. Ele era um homem preto, mas não me lembro de jamais ter visto uma única referência a esse fato feita por ele ou por qualquer outra pessoa, nem mesmo para perguntar por que ninguém se parecia com ele nos mais diferentes tipos de encontros de negócio. Também não me lembro de alguém ter perguntado onde estavam os outros como ele quando ele parou de ocupar esse lugar.

Não vou tentar explicar por que era assim, pelo menos não agora, mas posso dizer que predominava a ideia de que todo mundo, qualquer pessoa, podia conseguir “chegar lá” e não era comum que o caminho fosse colocado em discussão como não era comum que alguém colocasse na mesa uma pergunta simples sobre por que tão poucas pessoas pretas chegavam.

Tudo era sobre chegar, não importava o preço, a dificuldade, a dor, as pessoas que ficavam pelo caminho, o que fosse que tivesse que ser enfrentado ou em que isso te transformava, nada disso era relevante. Na verdade, o que importava era corresponder ao que era esperado, naquele momento, de uma pessoa de sucesso e isso significava corresponder aos padrões criados pela narrativa dominante e isso incluía o quanto você era capaz de focar na geração de receita, o quanto você ganhava financeiramente com isso e o que o dinheiro que você gerava era capaz de comprar. Para as pessoas que “venciam” a partir de origens simples e sem recursos, o sucesso também significava ficar o mais distante possível de seu lugar de origem.

O mundo tem mudado devagar nos últimos 35 anos. A internet chegou junto com a fragmentação da mídia, mas os pretos e pretas não chegaram. Veio o 3G, o 4G, o 5G mas o povo preto não veio. Basicamente, não havia questionamento, era apenas um fato. Pessoas pretas não existiam e as que existiam tinham se tornado brancas demais para ter o que dizer a respeito. Como aquele meu primeiro presidente e como eu, por exemplo.

Acompanhando a velocidade do tempo, o Clube de Criação também mudou devagar. Há cerca de seis anos estive no meio de uma discussão em que dirigentes do Clube, literalmente, “pediram a cabeça” de uma planejadora que ousou criticar a premiação de uma peça publicitária transfóbica. Há alguns meses, toda a liderança da Wieden+Kennedy caiu graças à veiculação de uma peça publicitária desenvolvida para o Clube que banalizava a escravização de seres humanos. Histórias diferentes e iguais nos mostrando que evoluímos na resposta, mas seguimos errando onde não podemos errar mais. Sim, o tempo em que parecíamos não estar aprendendo rápido o suficiente existiu e ele meio que foi ontem.

Mas hoje não é ontem. Quase 50 anos depois de sua fundação, o Clube de Criação, uma entidade reconhecida internacionalmente, que já foi presidida por alguns dos mais premiados profissionais de criação do Brasil e do mundo, tem uma presidenta e ela é preta, como é preta sua vice-presidente e toda a sua diretoria. O povo preto finalmente chegou! Das quase 200 pessoas que resolveram votar, 130 escolheram que estava na hora de acelerar a mudança. Não sei quantos associados o Clube tem hoje, mas me sinto tranquila em dizer que os que decidiram não votar em nenhuma das chapas disponíveis abriram mão de participar de um momento histórico.

Hoje, definitivamente, não é ontem e essa é a única coisa que pode nos levar a um amanhã construído a partir de novas bases. Entenda, repetir os modelos que nos trouxeram até aqui não vai nos levar a fazer mais nem melhor do que fizemos até hoje. De resto, seja bem-vinda Joana Mendes e, como disse minha amiga Samantha Almeida, não tenha dúvida: o que quer que aconteça daqui pra frente é a melhor coisa que poderia acontecer.

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