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Opinião

A arte do advocacy

Fazer advocacy é uma arte. Usar a arte para fazer advocacy é usar um recurso brilhante


23 de março de 2023 - 10h12

Crédito: Shutterstock

Fazer advocacy é uma arte. Usar a arte para fazer advocacy é usar um recurso brilhante na tentativa de fazer chamado duplo à sensibilidade e à consciência das audiências.

(Antes de avançar, vale uma explicação técnica sobre o termo, para o qual não há uma tradução literal em português: advocacy é o lobby institucional e legítimo realizado por setores e personagens socialmente influentes. É uma atividade que inclui processos de comunicação e de interação entre diferentes entes da sociedade, na busca por influir na agenda pública e pressionar por mudanças no status quo).

Como ativista das questões de gênero e, numa nota mais pessoal, neta de artista plástico, me pareceu óbvio e urgente recomendar o filme All the beauty and the bloodshed (em tradução livre, “Toda a beleza e o banho de sangue”) dirigido por Laura Poitras e produzido pela HBO, que concorreu ao Oscar 2023 na categoria de melhor documentário. A produção retrata a vida e obra da fotógrafa norte-americana de Nan Goldin, cuja trajetória só conheci agora, e é uma lição cinematográfica obrigatória para quem é comunicador e/ou ativista. Explico:

O filme retrata, de maneira muito potente e poética, a odisseia pessoal de uma mulher “pouco comportada” na descoberta de sua identidade e de seu meio de expressão por excelência, a fotografia. Seu ponto de vista marginal, próprio das mentes criativas “desencaixadas” da sociedade norte-americana dos anos 70/80/90, foi precursor de uma série de debates que ganhariam força na conjunção entre arte e ativismo, como a liberdade sexual e a denúncia sobre a omissão estatal no combate a epidemia da AIDS.

Acontece que, além de sua independência e radical compromisso com sua arte, a despeito de todo tipo de adversidade (no doc Nan fala publicamente pela primeira vez sobre o período em que se prostituiu para conseguir comprar filme e seguir sustentando seu trabalho fotográfico), a artista, que se tornou um grande nome no mundo das artes, foi crescentemente colocando sua sensibilidade e consciência à serviço das causas que abraçava.

Do alto do privilégio de ser um nome mundialmente consagrado no universo das artes – seus trabalhos integram o acervo dos principais museus dos EUA e Europa – Nan empreendeu um verdadeiro embate de Davi contra Golias ao liderar uma campanha pública contra os Sackler, uma das famílias mais poderosas dos EUA, cujo patriarca foi um grande colecionador de obras artísticas e artefatos arqueológicos, e por isso famosa como grande patrona das artes. O nome da dinastia batizava alas centrais dos principais museus de Nova Iorque e de outras instituições mundo afora.

O motivo da batalha? A fortuna dos Sackler vem da empresa Perdue Pharma, produtora do Oxycodin, principal medicamento responsável pela crise de opioides que já matou de overdose mais de 500 mil norte-americanos. E Nan está entre os sobreviventes desse veneno, cujo poder viciante já era sabido pela empresa muito antes de ser colocado no mercado, e para o qual foram desenvolvidas agressivas estratégias de marketing que o tornaram popular em todo o país (há muita investigação jornalística, filmes e livros que tratam em profundidade dessa questão).

O longa-metragem mostra como, sexagenária e visivelmente frágil fisicamente, Nan Goldin lidera por quatro anos uma brilhante e corajosa campanha de advocacy para expor como os Sackler fizeram de seu mecenato uma estratégia de PR e social washing, e para constranger publicamente as instituições a não aceitar as doações e retirar o nome da família de seus espaços expositivos.

Spoiler: sim, Nan e seu grupo P.A.I.N (Prescription Addiction Intervention Now) conseguem vencer a batalha pelo apagamento do nome dos Sackler de museus e universidades, e juridicamente obrigá-los a reparar minimamente de forma financeira parte de seus crimes. Recursos que são usados na criação de centros de redução de danos e prevenção a overdoses.

Mas eles conseguem, com seu poder e influência, evitar qualquer responsabilização criminal a qualquer membro da família, inclusive futuros descendentes. E a guerra contra a epidemia de opioides segue arrasando com famílias inteiras (2022 marca o recorde de 109 mil mortes por overdose).

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